segunda-feira, 13 de julho de 2009

MESTRE ECKHART E A RELAÇÃO DIRETA ENTRE CRIATURA E CRIADOR


MESTRE ECKHART E A RELAÇÃO DIRETA ENTRE CRIATURA E CRIADOR

O dominicano Johannes Eckhart, dito Mestre, nascido em 1260, viveu um momento onde as divergências entre fé e razão foram palco de um conflito no qual a questão central foi a relação de fragilidade teórica entre ambas. Nesse cenário, a filosofia, até então, esteve submetida à teologia, porém a consciência de que esses dois caminhos se desencontravam suscitou dúvidas na tradição, pois ao observarmos o plano do saber racional (clareza e evidência lógica) e o plano da doutrina teológica (orientado pela moral e baseado na luminosa certeza da fé) [1] nós enxergaríamos uma “perfeita assimetria”. Isso porque o âmbito das verdades reveladas é radicalmente subtraído ao reino do conhecimento racional, eclodindo, assim, a concepção de que a filosofia não é mais serva da teologia, pois esta se garante pela força de coesão da fé [2]. A razão não mais poderia oferecer suporte algum de justificação para a fé. Logo, a teologia racional viveria uma forte crise, dando espaço para o reflorescimento do misticismo. Digo reflorescimento, pois ele sempre sobreviveu, mesmo durante o longo período medieval. Tentaremos elucidar, em linhas gerais, a importância de Eckhart e seu papel nesse movimento inovador que, de certa forma, contribuiu para os ideais da Renascença.

Mesmo com o papel desempenhado pela razão, e pelos caminhos que ela poderia empreender, o fim seria o retorno e união a Deus. A crença até aqui era a de que, por razão e fé serem dons provenientes de Deus, a contrariedade que explicitei acima era inconcebível. Entretanto veio a crise. Sucumbida a confiança nas pretensões escolásticas de que a fé seria justificada pela razão, a questão foi exaltada junto ao misticismo. Esse passou a ser o único caminho praticável para o restabelecimento de uma relação direta entre a criatura e o criador, justificando, desse modo, a fé. Aqui podemos explicitar a herança neoplatônica: uma experiência sobrenatural e misteriosa que desperta o sentimento de uma união com o divino, em outras palavras, que nos dá acesso à realidade divina.

Eckhart foi o expoente principal do misticismo especulativo alemão, situando-se em meio à corrida imposta pelos homens de fé, na qual o grande objetivo era o de restabelecer o contato entre homem e Deus. No misticismo especulativo, podemos explicitar duas características fundamentais. É chamado de misticismo porque postula que Deus está além de nossa compreensão conceitual e que é impossível que o conheçamos racionalmente; porém, sem Ele, não somos nada. A outra característica diz respeito ao caráter filosófico, que se alimenta, principalmente, de fontes neoplatônicas sob a influência de Proclo, construindo uma cadeia lógica de proposições que representavam o esforço para encontrar Deus para lá das criaturas, que em si mesmas não seriam nada:

Se Deus é o ser porque é Uno, e se nada além de Deus é uno, nada além dele é ser. Portanto, a criatura é um puro nada, pelo menos no sentido de que, por si mesma, ela não é. O que nela pode receber o título de ser se reduz ao que nela se manifesta da fecundidade divina. O que caracteriza a criatura considerada em si é sua nulidade, mas a criatura é, ao contrário, na medida em que depende do intelecto e do intelectual (...). [3]

Em Eckhart, as criaturas, em si mesmas, mesmo que possuam o divino, não passam do puro nada; e, por isso, o amor às criaturas e a busca incessante do prazer deixam como maiores legados a tristeza, a dor e a insatisfação. Teríamos que adotar outro caminho se pretendemos a união com Deus. Para Eckhart, esse caminho, com muitas controvérsias na definição do termo, se traduz no que chamou de desprendimento. Abgeschiedenheit: essa palavra está em conexão com a disponibilidade plena, com liberdade de e para, com desprendimento, pobreza, despreocupação, esvaziamento de si, perfeito equilíbrio interior [4]. O desprendimento sincero está acima de tudo e desligado de todas as criaturas. Esse caminho se torna evidente quando afirmamos que o lugar natural de Deus é a unidade e a pureza. A unidade explica-se porque a unidade de todas as coisas radica na unidade de Deus, pois Ele é a realidade última, superando o ser, a bondade, a justiça e o amor. Ao despi-lo de todas essas vestimentas O encontraríamos repousando em si mesmo, em toda sua pureza e unidade. Nas palavras do próprio Eckhart, “todos os números dependem do um, mas o um não depende de ninguém: assim o é com Deus” [5]. Por isso, é colocado em questão o próprio fato de se é possível falarmos de virtude quando estamos falando em Deus.

Quando desprendidos, Deus entrega-se aos nossos corações, pois o desprendimento é a morada natural d’ Ele. Seguiríamos, caso contrário, a um mundo de dor se adotássemos uma busca engendrada no sofrimento de outras coisas que não Deus para, assim, atingi-Lo. Esse é o caminho contra o desprendimento e jamais repousaríamos em nós mesmos; consequentemente, não nos assemelharíamos a Ele. No desprendimento, há uma ruptura na aparente barreira entre Deus e homem; somos iguais. Nós assumiríamos o próprio ser de Deus, na imobilidade e imutabilidade, em uma experiência de eternidade:

(...) O verdadeiro desprendimento nada mais é do que o espírito manter-se inabalável diante de qualquer sentimento que sobrevenha, seja de amor, de sofrimento, de consideração, de difamação ou de injúria, assim como uma montanha de chumbo permanece inabalável diante de um vento fraco. Esse desprendimento inabalável eleva o ser humano até a maior igualdade com Deus, porque Deus é Deus por causa de seu desprendimento inabalável, e o desprendimento é a origem de sua pureza, de sua simplicidade e de sua imutabilidade (...) [6]

Polemiza, seguindo essa linha de pensamento, com a questão da oração: a verdadeira oração, para Eckhart, nada pede e nada espera em troca. Afirmações como essa, ao longo de sua obra, representarão linhas de fuga na tradição e incomodarão autoridades, tais como as ideias de que Deus nasce de novo na alma desprendida e de que não devemos nos lamentar por nossos pecados, pois Deus já tinha conhecimento deles muito antes de nos criar. Aliás, não haveria muito menos uma vontade de criação: tudo já estaria presente na mente de Deus desde a eternidade. Foram exaltados, até aqui, a potencialização do espírito e o incondicionamento de tudo o que há. Não podemos deixar de citar que a questão do “nada querer para si” é muito importante, também, para o budismo e o taoísmo, importantes influências orientais sofridas por Eckhart. Ele luta contra a passividade e a materialidade, que se traduziriam em uma pobreza ontológica, alvo central do desprendimento, pois, temos que nos esvaziar. Nosso espírito precisa estar totalmente desprendido para que Deus se una a ele. O esvaziamento total do ser e a renúncia aos apegos aos diversos valores se fazem necessários para que alcancemos a verdadeira plenitude.

Bibliografia:

- Dicionário dos Filósofos/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

- Dicionário Básico de Filosofia/ Hilton Japiassú, Danilo Marcondes- 3ª ed. rev. e ampl.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

-ECKHART, Mestre. Sobre o Desprendimento e Outros Textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

-ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. E.ed. Bragança Paulista/Editora Universitária São Francisco, 2006.

-GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins fontes, 1995.

-História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média/ Giovanni Reale, Dario Antiseri- São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Filosofia).


[1] História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média/ Giovanni Reale, Dario Antiseri- São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Filosofia). p. 615.

[2] Ibid. p. 615.

[3]GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins fontes, 1995. p. 868.

[4] ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. E.ed. Bragança Paulista/Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 37.

[5] Ibid. p. 31.

[6] ECKHART, Mestre. Sobre o Desprendimento e Outros Textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 11.

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