terça-feira, 30 de setembro de 2008

A coisificação


A coisificação de Paulo Honório: uma alusão ao homem e suas ambições
(da obra "S. Bernardo" de Graciliano Ramos)

Paulo Honório, a personagem central da trama. Um homem como qualquer outro, sob um primeiro olhar. "Até os dezoito anos gastei muita enxada ganhando cinco tostões por doze horas de serviço". Um fazendeiro antes homem pobre do sertão que, ao mesmo tempo que conquistou, perdeu. Perdeu, aliás, algo que faz parte da essência de um homem: o traço humano, a humanidade.
A coisificação do homem foi muito bem trabalhada na obra "S. Bernardo" de Graciliano Ramos e representa um dos legados literários mais ricos de nossa literatura, sendo um dos marcos do Modernismo brasileiro. O livro conta a história da vida de Paulo (narrada por ele mesmo), que conquistou muitas riquezas ao comprar São Bernardo, fazenda que ele fará crescer e gerar grandes lucros. Para obter tal feito, ele passará por cima de muitas pessoas tendo em mente seu grande desejo de enriquecimento: "a princípio o capital desviava de mim, e persegui-o sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações comerciais de armas engatilhadas".
O processo que se observa na história é que durante seu enriquecimento, ele vai deixando de ser um "ser humano" sob um ponto de vista psicológico. Paulo Honório perde seus raros bons sentimentos, restando o ódio e a ganância. A culpa que será marcante, passada a narrativa da história, onde ele tentará resgatar a sua humanidade: "emoções indefiníveis me agitam- inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração". O desejo de enriquecer se torna tão evidente como a desumanização desenvolvida em torno de seus empregados, chegando a atribuir características de animais aos mesmos, "Casimiro Lopes, que não bebia água na ribeira do navio, acompanhou-me. Gosto dele. É corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão". Casimiro Lopes, para Paulo, o entende mais que todos, pois a semelhança entre os dois é tão grande (desconsiderando que um será o patrão e o outro o empregado) que até parecem serem uma pessoa só. Solidariedade e respeito são conceitos que Paulo Honório desconhecerá.
Convenhamos que isso não é mera ficção, nem algo incomum. No mundo contemporâneo, principalmente pós-Revolução Industrial, o homem vem sendo tratado como um corpo que produz. Dispensamos a visão do corpo sob uma perspectiva biológica para compreendê-lo como uma engrenagem em uma grande máquina. Essa grande máquina é o mundo do trabalho, onde o objetivo maior é acumular capital. Nesse nosso sistema explorador, o trabalho passa a ser, muitas vezes, sinônimo de tortura e uma de suas consequências é a coisificação do homem quando nos deixamos dominar psicologicamente pelo sistema. Obter sucesso ultrapassa, muitas vezes, valores humanos, fazendo com que muitos pisem e ignorem os outros, deixando de encará-los como iguais.
Tal processo é observado no livro em muitas passagens, como no início do capítulo XXI, onde Paulo Honório diz "a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste". Nesse trecho ele se lamenta pelo fato de não ter conhecido Madalena, sua esposa, por completo. Agindo de má-fé e adotando uma visão determinista, ele culpa o modo de vida ao qual ele se submeteu como agente coisificador, o que veio a ter como resultado o desprezo por sua mulher. A vida de Madalena perdeu sentido ao lado de Paulo, ela vivia triste e diante da situação "afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos". A brutalidade do pensamento do fazendeiro é grande e não se limitou ao campo teórico.
Além do desprezo por Madalena, o fazendeiro agia brutalmente com ela, Dona Glória (tia de sua esposa), seus empregados e diante dos fatos do dia-a-dia: "vão ver aquele infeliz", grita para Madalena e Dona Glória quando o filho dos dois começa a chorar. Quando Paulo Honório surpreende Madalena escrevendo uma carta endereçada para Azevedo Gondim ele a manda mostrar, mas ela nega alegando que o conteúdo somente interessa a ela. Ele a pega pelo braço e ela reage: "vá para o inferno, trate de sua vida". Ele, enfurecido, diz: " deixa ver a carta, galinha". A situação se torna mais dramática quando Dona Glória (uma pessoa de pouca dignidade segundo ele) chega à porta: "vá amolar a puta que a pariu. Está mouca, aí com a sua carinha de santa? É isto: puta que a pariu. E se achar ruim, rua. A senhora e a boa de sua sobrinha, compreende? Puta que a pariu as duas".
O materialismo que se desenvolve e o medo da perda dos lucros é um dos traços que dominam a personalidade de Paulo Honório, traços estes, que apresentam tanta força como sua brutalidade. A caridade prestada por Madalena aos seus empregados, sua visão socialista e o fato de ser uma mulher instruída causam-no preocupação. "A culpada era Madalena, que tinha oferecido a Rosa um vestido de seda. É verdade que o vestido tinha um rasgão. Mas era disparate" e "comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. 'Palestras amenas e variadas'. Que haveria nas palestras? Reformas sociais ou coisa pior. Sei lá, mulher sem religião é capaz de tudo". Note que na verdade o materialista é o próprio falante.
A sua própria relação com Madalena tem um início junto a um obejtivo: criar um herdeiro para S. Bernardo. "Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar". A própria posição a qual Paulo Honório se coloca tem vínculos com sua ambição. O amor não existe. Talvez uma pequena atração, mas nada além disso. O fim de tal ação seria a criação de um herdeiro que trilharia as mesmas ambições do pai. Entretanto, o proprietário de São Bernardo, não teve forças para sustentar a prosperidade desse casamento e tudo desmoronou de uma forma trágica. As brigas do "casal" começaram pouco tempo após tornarem-se marido e mulher. Paulo Honório achou que tudo que Madalena precisava era da sua riqueza para, então, ser feliz. A riqueza que ele conquistou, passando por cima de pessoas e se envolvendo em assassinatos, não foi suficiente para dar amor a Madalena, que "possuía um excelente coração" segundo ele algo que o sensibilizou, "descobri nela manifestações de ternura que me sensibilizaram. E, como sabem, não sou homem de sensibilidades. É certo que tenho experimentado mudanças nestes dois últimos anos. Mas isto passa".
"Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos!". Em um certo momento, Paulo Honório começa a reconhecer a condição de coisificação que se traduz numa animalização dele mesmo. Ele começou a se sentir bruto na aparência, um reflexo da sua alma que agora se exteriorizava. " Levantei-me e aproximei-me da luz. As minhas mãos eram realmente enormes. Fui ao espelho. Muito feio, o dr, Magalhães; mas eu, naquela vida dos mil diabos, berrando com os caboclos o dia inteiro, ao sol, estava medonho. Queimado. Que sobrancelhas! O cabelo era grisalho, mas a barba embranquecia. Sem me barbear! Que desleixo!".
Aqui faço alusão à obra "A Metamorfose" de Franz Kafka onde o caixeiro-viajante Gregor Samsa ao acordar para o trabalho, numa manhã, vê que se transformou em um terrível inseto "com um dorso duro e inúmeras patas". Nesse estado, Gregor começa a refletir sobre sua metamorfose, primeiro sob um aspecto físico, depois sob um aspecto psicológico. Uma metáfora da sociedade, Gregor conclui que ele era somente o "sustento" da casa, nada mais, ou seja, ele era a fonte de renda. Paulo Honório não foi a vítima, como Gregor Samsa, porém as semelhanças entre as duas personagens existem: o fazendeiro Paulo Honório se sentiu metamorfoseado em um animal bruto, não em um inseto debilitado, mas chegou à conclusão de que se objetivo até agora tinha sido o sustento de seu grande negócio e isso o tornou maquinário, um animal sem sentimentos. Gregor se sentiu uma "coisa" ao mesmo tempo que era visto como uma "coisa" por sua famíla. Tal visão é despertada em Paulo Honório, principalmente, após a morte de Madalena, que o fará pensar que talvez durante todo esse tempo ela o via assim: bruto e animalesco.
A morte de Madalena. Um choque para Paulo Honório. Madalena foi vítima de um intenso ciúme e para o fazendeiro, ela era acima de tudo sua propriedade. "E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr o dia inteiro". Não foi preciso que ele cometesse tal crime, não duvido que ele seria capaz de tal brutalidade, mas não foi necessário. "Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca". Desde então, ele vive perturbado e de algum modo questiona a maneira que viveu e as ações que tomou. "O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada" e "cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?".
E foi exatamente o que aconteceu: aos poucos as pessoas foram indo embora. "(...) e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa. O jardim, a horta, o pomar- abandonados (...)". São Bernardo aos poucos perdeu o brilho que somente Paulo Honório enxergava: um brilho que foi construído em cima do sofrimento de seus empregados. Viúvo, ele sente angústia em relação a Madalena e também pelo fato de não ter a amizade de seu filho, relatando sua história como uma tentativa de resgatar sua humanidade. "Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio". "Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas". Ele está no caminho certo. Paulo Honório reconheceu o que foi e o que fez em prol de suas ambições.

E nós: podemos nos coisificar tanto quanto Paulo Honório?