HIPOTIPOSES PIRRÔNICAS: O CETICISMO ANTIGO E OS QUATRO PRIMEIROS TROPOS DE ENESIDEMO
A obra Hipotiposes Pirrônicas, de Sexto Empírico, retoma a maioria dos argumentos clássicos do ceticismo antigo, representando um legado incendiário no que diz respeito às discussões gnoseo-epistemológicas. A impossibilidade de se estabelecer um critério de verdade é exaltada, pois todo conhecimento, antes de ganhar o cunho de objetivo, passou por uma subjetividade particular. No devido texto, apresentaremos uma noção geral do ceticismo antigo, seus alvos e objetivos, sem, é claro, ter a pretensão de esgotar aqui, em poucas palavras, esse tipo de atitude diante do mundo. Ilustraremos nossa proposta com os quatro primeiros tropos (ou modos) de Enesidemo (os quais Sexto adaptou e sistematizou), que são aqueles que nos dizem respeito a quem julga, ou seja, o sujeito que apreende o mundo; mostrando, assim, que nos precipitamos ao formular juízos acerca da realidade.
Antes de tudo, falemos sobre o ceticismo: nas Hipotiposes Pirrônicas (HP) I, 8; segue-se que “o ceticismo é a capacidade de colocar frente a frente [ou opor], umas com as outras, da maneira que seja, tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligíveis, capacidade está que, devido à força igual que há nas coisas e nos pensamentos opostos, nos faz ter à suspensão (epoché) e, em seguida, à tranquilidade (ataraxia)”. Tal conduta seria consequência de um cenário conflituoso, a saber: o da tensão entre as diversas teorias dogmáticas, que buscam avidamente a verdade e acreditam em sua posse. Para a compreensão desse cenário, Sexto Empírico distingue três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética (HP I, 1-4). Diante de suas investigações os dogmáticos afirmam terem descoberto a verdade; os acadêmicos, por sua vez, afirmam a impossibilidade de sua apreensão; e os céticos continuam investigando; pois, enquanto as outras, de certa maneira, postulam um fim ao filosofar o cético continua incansavelmente tal exercício, pois mesmo sua tranquilidade é provisória. A principal característica do cético é o questionamento acerca das certezas que nos foram dadas ou construídas, de modo que essa capacidade de flutuar entre as diversas opiniões tem a esperança de atingir a ataraxia.
Essa flutuação ou suspensão do juízo é uma atitude de não afirmar nem negar qualquer juízo. Sendo assim, ao não rejeitar nem assentir a juízo algum, o cético torna-se imperturbável: ao contrário daqueles que buscam a verdade acreditando que a tranquilidade se dará pela distinção entre o verdadeiro e o falso, o cético enuncia (HP I, 15) suas expressões de maneira que suas limitações recaem sobre si mesmas, dizendo aquilo que lhe aparece sem dizer em que consiste a substância em sua realidade. Ao analisarmos certos modos pelos quais a suspensão se realiza (que serão, aqui, os quatro primeiros tropos- ou modos- de Enesidemo) tentaremos explicar como ela se dá, perpassando as objeções céticas e suas críticas ao dogmatismo, representado, por sua vez, pelas várias correntes helenísticas. O cético talvez seja o primeiro crítico da razão e, mesmo que faça tal crítica com o uso da mesma, desempenha o papel de lembrá-la de seus limites através da incapacidade de ter razões suficientes em optar por A ou B, pois julgamos coisas injustificadas ou julgamos coisas justificadas garantidas por um critério injustificado. A suspensão, provavelmente, não é uma decisão prévia e sim uma consequência que se dá frente aos grandes sistemas e filosofias dogmáticas que buscam exaltar nossa faculdade racional. O cético formula teorias para atacar as teorias alheias, mas não para impor uma nova: não deseja construir uma teoria afirmativa acerca de algo, muito menos busca uma substancialização. O ceticismo, em outras palavras, busca a cura para essa doença que é a precipitação dogmática: o cético, segundo Sexto Empírico (HP I, 16), não assente a coisas não-evidentes, não adota dogmas. Continua ele (HP I, 17): “pois nós seguimos um raciocínio determinado que nos mostra, de acordo com a aparência, como viver segundo os costumes tradicionais, as leis, os modos de vida e nossas afecções próprias”. Sexto Empírico, desse modo, coloca-se sob a vida, a experiência e o fenômeno, não buscando dogmatizar nossas impressões quando formulamos juízos, pois temos razões para duvidar de tais formulações. Expor tais razões será um dos objetivos desse pequeno texto.
Partiremos desse ponto em diante, para uma ilustração mediante os quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo (ou seja, estaremos trabalhando com tropos atribuídos aos céticos antigos), pois eles parecem ilustrar nossa proposta de trabalho e nos levantar
Para induzir-nos a essa epoché generalizada, fazendo-nos cessar de dogmatizar, seu princípio básico consiste em opor a todo discurso um discurso igual, isto é, de igual força persuasiva, manifestando a equipolência (isosthéneia), no que respeita à credibilidade, dos argumentos conflitantes que sempre se podem aduzir de um lado e outro de qualquer questão (Sexto Empírico, HP I, 10), nenhum deles revelando-se mais digno de fé (...). E mobilizar-se-ão as figuras e tropos todos que gerações de pensadores céticos foram compilando. Invocar-se-ão as ilusões dos sentidos, os argumentos baseados nos sonhos e nas alucinações. Far-se-á apelo às diferenças inegáveis entre as tradições, leis e costumes. Lembrar-se-á o caráter relativo de todas as coisas[1].
O primeiro tropo baseia-se na variedade dos animais; o segundo, nas diferenças entre os seres humanos; o terceiro tem como tema central as diferentes estruturas dos órgãos dos sentidos e o quarto trata das circunstâncias exteriores (estados nos quais os indivíduos se encontram). Os escolhemos, pois discursam à respeito daquele que formula juízos acerca das impressões, lembrando, assim, que o cético não nega a existência do fenômeno e sim do que dizem dele.
Sobre o segundo modo, segue-se a passagem (HP I, 79):
O segundo modo é, como havíamos dito, aquele baseado nas diferenças entre os homens; pois, mesmo se admitimos, por hipótese, que os homens são mais dignos de crédito do que os animais irracionais, verificaremos que mesmo nossas próprias diferenças, por si mesmas, levam à suspensão. Pois diz-se que o ser humano é composto de duas coisas, alma e corpo (...). Assim, no que diz respeito ao corpo, diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito às nossas peculiaridades constitutivas.
Mais adiante (HP I, 85) Sexto Empírico ressalta a possibilidade de que, se nos diferimos nesse aspecto corporal, é razoável pensar que também variemos no que diz respeito à alma, tomando como base a ciência da fisionomia da época a qual credita ao corpo uma extensão da alma. As divergências a nível de corpo, devido a uma diferença nos humores predominantes, se traduzem em impressões diferentes, que se desdobram em juízos diferentes. Para a visualização da questão da alma temos o seguinte: a existência de inúmeras teorias que se contradizem configurando uma guerra onde, como consequente cenário, se aniquilariam. Uma vez que divergimos na nossa capacidade de formular juízos, não escolhemos ou evitamos as mesmas coisas. Se, admitindo-se essa possibilidade carregada de narcisismo, é o homem que diz a verdade acerca do real, colocamos a seguinte questão: que homens dirão a verdade acerca da realidade, já que divergimos de nós mesmos? Só podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si, pois, caso tentássemos o contrário, cairíamos no seguinte âmbito: o das precipitações e contradições constantes. A felicidade em viver tal cenário, para o cético, é a esperança de, através da epoché, atingir a ataraxia. A suspensão e o contínuo pesquisar são o resultado dessa realidade acerca da qual o cético prefere se calar.
O terceiro modo de Enesidemo foca-se no individual: a partir da constituição corporal que o homem possui, ele encontra-se diante de contradições apreendidas pelos sentidos. Segue-se, então, a impossibilidade de dizer o que, por exemplo, é agradável ou desagradável, ou seja, de dizer sua natureza através de juízos formulados por relatos de sentidos que se contradizem o tempo inteiro, restando-nos, somente, o falar acerca do que se apresenta, sem dogmatismos. É cogitada, também, a possibilidade da existência de outras qualidades caso possuíssemos outros sentidos, pois (HP I, 97) percebemos apenas aquelas qualidades que somos capazes de apreender. Com ou sem a existência de outros sentidos, a natureza dos objetos percebidos não é evidente. Da mesma forma, segundo Sexto, o pensamento pode cair em contradição e erro: em meio aos julgamentos fornecidos por confusas sensações, que acreditamos apreender por pensamento, por que acreditamos que eles atingem o exterior? Somos levados, de todo modo, à suspensão.
O quarto modo de suspensão começa a ser explorado, precisamente,
Este modo baseia-se, como dizemos, nas “circunstâncias” e, com este termo, queremos indicar condições ou disposições. Este modo, dizemos, lida com estados que são ou naturais ou não-naturais, tais como estar acordado ou estar dormindo; com condicionamentos devido à idade, ao movimento ou ao repouso, ao amor ou ao ódio, ao vazio ou ao preenchimento, à embriaguez ou à sobriedade, com predisposições tais como confiança ou medo, sofrimento ou alegria.
A genialidade do citado tropo é de espantar. As possibilidades daqueles que procuram um critério de verdade para suas demonstrações ficam cada vez mais escassas, pois viu-se o seguinte movimento: partindo do conflito entre as apreensões das diferentes espécies para o conflito das apreensões dos diversos homens; depois, para o conflito entre as contradições produzidas pelos órgãos dos sentidos do indivíduo; e, por último, o conflito das apreensões produzidas sob diferentes condições e disposições do indivíduo. O que Sexto ressalta no quarto modo é a constatação de que as coisas nos afetam de diferentes maneiras quando perpassamos por diferentes estados. Esses juízos vãos, que formulamos para descrever a realidade mesma das coisas, estão à deriva de oscilações subjetivas, pois o fenômeno - ou seja, aquilo que aparece - pode nos afetar mais, ou menos, agressivamente de acordo com a nossa maior, ou menor, vulnerabilidade. Sempre nos encontramos em alguma circunstância, pois nunca estamos fora do seu campo de abrangência. Tal constatação ressalta uma impossibilidade de imparcialidade, pois em qualquer espécie de afirmação ou negação, já o fazemos dentro do mencionado campo, privilegiando, sempre, nossa percepção e, depois, nosso julgamento.
As circunstâncias mencionadas na passagem destacada remetem à necessidade de se ter uma preferência por uma determinada circunstância, esta tomada como parâmetro dos julgamentos. Podemos tomar uma circunstância, ou impressão, como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117): sem crítica e provas ou com crítica e provas. Nos dois casos, chegaríamos à conclusão de que ambas não se distanciam muito, pois ao tomarmos o segundo caminho precisaríamos de um critério para validar nossa crítica ou demonstração. A exigência de tal critério nos traz a necessidade de prová-lo também, pois ele deve mostrar-se verdadeiro através de razões compreensíveis. Entretanto, para validar tal critério, nós precisaríamos de um outro critério, e, assim, iríamos ao infinito sem provar, realmente, coisa alguma. Tanto o critério quanto a prova, portanto, são indignos de confiança, pois estão envolvidos em um jogo de raciocínio circular; sendo assim, não podemos deles tirar nossa prova para garantir que a impressão A, sob um estado, nos diz mais sobre a realidade do que a impressão B. Além disso, um estado não-natural é natural entre elementos não-naturais. A suspensão do juízo acerca da natureza das realidades externas é o resultado desse conflito de percepções e pensamentos.
Importante destacar o fato de que a epoché pirrônica é mais radical que a epoché de Sexto Empírico por uma pequena diferença: enquanto Pirro não via razão alguma para estabelecer uma hierarquia entre os diversos comportamentos humanos, pois todas as existências se equivalem, Sexto Empírico preconiza um modo de vida “empírico”, governado pelas lições da experiência[2]. Sexto, dessa maneira, defende a distância entre o ser das coisas e o seu parecer, afirmando que nos relacionamos somente com o fenômeno:
O fenomenismo de Sexto revela-se formulado em termos claramente dualísticos: o fenômeno torna-se a impressão ou alteração sensível do sujeito e, como tal, é contraposto ao objeto, à “coisa externa”, ou seja, à coisa que é diferente do sujeito, sendo pressuposta como causa da alteração sensível do próprio sujeito (...). Como mera alteração do sujeito, o fenômeno não resume em si toda a realidade, deixando fora de si o “objeto externo”, o que é declarado, senão como incognoscível de direito, pelo menos como não conhecido de fato.[3]
Frente aos sistemas dogmáticos, o cético poderia ser até chamado de fraco. Entretanto, sua própria conduta o torna imune quando as “verdades” são abaladas, pois para ele nada é ruim ou bom por natureza. O cético está tão vulnerável às necessidades quanto o dogmático, porém, com o auxílio da epoché e da posterior ataraxia, ele não sofre duas vezes, numa mesma circunstância e ao mesmo tempo, como os dogmáticos, a saber: pela necessidade mesma e pelos juízos que formulam acerca dela.
Referências Bibliográficas:
-EMPÍRICO, SEXTO. Hipotiposes Pirrônicas, Livro I. Tradução livre de Peter R. de Oliveira, Rio de Janeiro: 2005.
-HUISMAN, D. Dicionário dos Filósofos São Paulo: Martins Fontes, 2001.
-HUISMAN, D. Dicionário de obras filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2002
-PORCHAT PEREIRA, O. “Saber Comum e Ceticismo”, Manuscrito, vol. IX, nº. 1, Abril de 1986, pp. 143-59.
- REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol I, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990.
[1]PORCHAT PEREIRA, O. “Saber Comum e Ceticismo”, Manuscrito, vol. IX, nº. 1, Abril de 1986. p. 145.
[2] HUISMAN, D. Dicionário de obras filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 191.
[3] REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990. p. 318-19.
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