quinta-feira, 30 de julho de 2009

Nietzsche: Amizade Estelar


"Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra".

(Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 279)

Hipotiposes Pirrônicas




HIPOTIPOSES PIRRÔNICAS: O CETICISMO ANTIGO E OS QUATRO PRIMEIROS TROPOS DE ENESIDEMO

A obra Hipotiposes Pirrônicas, de Sexto Empírico, retoma a maioria dos argumentos clássicos do ceticismo antigo, representando um legado incendiário no que diz respeito às discussões gnoseo-epistemológicas. A impossibilidade de se estabelecer um critério de verdade é exaltada, pois todo conhecimento, antes de ganhar o cunho de objetivo, passou por uma subjetividade particular. No devido texto, apresentaremos uma noção geral do ceticismo antigo, seus alvos e objetivos, sem, é claro, ter a pretensão de esgotar aqui, em poucas palavras, esse tipo de atitude diante do mundo. Ilustraremos nossa proposta com os quatro primeiros tropos (ou modos) de Enesidemo (os quais Sexto adaptou e sistematizou), que são aqueles que nos dizem respeito a quem julga, ou seja, o sujeito que apreende o mundo; mostrando, assim, que nos precipitamos ao formular juízos acerca da realidade.

Antes de tudo, falemos sobre o ceticismo: nas Hipotiposes Pirrônicas (HP) I, 8; segue-se que “o ceticismo é a capacidade de colocar frente a frente [ou opor], umas com as outras, da maneira que seja, tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligíveis, capacidade está que, devido à força igual que há nas coisas e nos pensamentos opostos, nos faz ter à suspensão (epoché) e, em seguida, à tranquilidade (ataraxia)”. Tal conduta seria consequência de um cenário conflituoso, a saber: o da tensão entre as diversas teorias dogmáticas, que buscam avidamente a verdade e acreditam em sua posse. Para a compreensão desse cenário, Sexto Empírico distingue três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética (HP I, 1-4). Diante de suas investigações os dogmáticos afirmam terem descoberto a verdade; os acadêmicos, por sua vez, afirmam a impossibilidade de sua apreensão; e os céticos continuam investigando; pois, enquanto as outras, de certa maneira, postulam um fim ao filosofar o cético continua incansavelmente tal exercício, pois mesmo sua tranquilidade é provisória. A principal característica do cético é o questionamento acerca das certezas que nos foram dadas ou construídas, de modo que essa capacidade de flutuar entre as diversas opiniões tem a esperança de atingir a ataraxia.

Essa flutuação ou suspensão do juízo é uma atitude de não afirmar nem negar qualquer juízo. Sendo assim, ao não rejeitar nem assentir a juízo algum, o cético torna-se imperturbável: ao contrário daqueles que buscam a verdade acreditando que a tranquilidade se dará pela distinção entre o verdadeiro e o falso, o cético enuncia (HP I, 15) suas expressões de maneira que suas limitações recaem sobre si mesmas, dizendo aquilo que lhe aparece sem dizer em que consiste a substância em sua realidade. Ao analisarmos certos modos pelos quais a suspensão se realiza (que serão, aqui, os quatro primeiros tropos- ou modos- de Enesidemo) tentaremos explicar como ela se dá, perpassando as objeções céticas e suas críticas ao dogmatismo, representado, por sua vez, pelas várias correntes helenísticas. O cético talvez seja o primeiro crítico da razão e, mesmo que faça tal crítica com o uso da mesma, desempenha o papel de lembrá-la de seus limites através da incapacidade de ter razões suficientes em optar por A ou B, pois julgamos coisas injustificadas ou julgamos coisas justificadas garantidas por um critério injustificado. A suspensão, provavelmente, não é uma decisão prévia e sim uma consequência que se dá frente aos grandes sistemas e filosofias dogmáticas que buscam exaltar nossa faculdade racional. O cético formula teorias para atacar as teorias alheias, mas não para impor uma nova: não deseja construir uma teoria afirmativa acerca de algo, muito menos busca uma substancialização. O ceticismo, em outras palavras, busca a cura para essa doença que é a precipitação dogmática: o cético, segundo Sexto Empírico (HP I, 16), não assente a coisas não-evidentes, não adota dogmas. Continua ele (HP I, 17): “pois nós seguimos um raciocínio determinado que nos mostra, de acordo com a aparência, como viver segundo os costumes tradicionais, as leis, os modos de vida e nossas afecções próprias”. Sexto Empírico, desse modo, coloca-se sob a vida, a experiência e o fenômeno, não buscando dogmatizar nossas impressões quando formulamos juízos, pois temos razões para duvidar de tais formulações. Expor tais razões será um dos objetivos desse pequeno texto.

Partiremos desse ponto em diante, para uma ilustração mediante os quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo (ou seja, estaremos trabalhando com tropos atribuídos aos céticos antigos), pois eles parecem ilustrar nossa proposta de trabalho e nos levantar em suspensão. Jogam-nos a dúvida de que as coisas não se diferenciam entre si, pois são igualmente incertas e indiscerníveis:

Para induzir-nos a essa epoché generalizada, fazendo-nos cessar de dogmatizar, seu princípio básico consiste em opor a todo discurso um discurso igual, isto é, de igual força persuasiva, manifestando a equipolência (isosthéneia), no que respeita à credibilidade, dos argumentos conflitantes que sempre se podem aduzir de um lado e outro de qualquer questão (Sexto Empírico, HP I, 10), nenhum deles revelando-se mais digno de fé (...). E mobilizar-se-ão as figuras e tropos todos que gerações de pensadores céticos foram compilando. Invocar-se-ão as ilusões dos sentidos, os argumentos baseados nos sonhos e nas alucinações. Far-se-á apelo às diferenças inegáveis entre as tradições, leis e costumes. Lembrar-se-á o caráter relativo de todas as coisas[1].

O primeiro tropo baseia-se na variedade dos animais; o segundo, nas diferenças entre os seres humanos; o terceiro tem como tema central as diferentes estruturas dos órgãos dos sentidos e o quarto trata das circunstâncias exteriores (estados nos quais os indivíduos se encontram). Os escolhemos, pois discursam à respeito daquele que formula juízos acerca das impressões, lembrando, assim, que o cético não nega a existência do fenômeno e sim do que dizem dele.

Em HP I, 40; temos o início dessa exposição: “o primeiro argumento (ou tropo), como dissemos, é aquele que mostra que, devido às diferenças entre os animais, as mesmas impressões não são produzidas pelas mesmas coisas. Isto, inferimos tanto das diferenças quanto à geração dos animais quanto da variedade de composição de seus corpos”. Então, devido a essas diferenças quanto à geração, seria natural a existência de contrariedade no que diz respeito ao modo como as diferentes espécies são afetadas pelos fenômenos, constituindo um cenário divergente, discordante e conflituoso (HP I, 43). Esse tropo exalta as diferenças entre os diversos animais- inclusive o homem- no que diz respeito às partes do corpo que possuem como funções principais a decisão e a percepção: se os animais possuem constituições corporais distintas, então, são afetados de maneiras diversas por aquilo que é externo. Isso revela, assim, a probabilidade de as substâncias externas serem diferentes tais como as enxergamos, se possuíssemos outra constituição. Poderíamos dizer a mesma coisa acerca do prazer e do desprazer, pois o que nos agrada enquanto animais com uma certa constituição poderia não nos agradar se possuíssemos outra. Sexto conclui (HP I, 59) dizendo que se as mesmas coisas parecem ser diferentes devido à diversidade dos animais, seremos, de fato, capazes de declarar nossas próprias impressões a respeito da substância, mas, no que diz respeito à sua natureza real, deveremos suspender o juízo. Não podemos partir da crença que somos superiores, pois possuímos uma constituição corporal que nos concede tanto vantagens quanto desvantagens e muito menos dar maior credibilidade, dizendo que o que parece para nós é a natureza real da coisa.

Sobre o segundo modo, segue-se a passagem (HP I, 79):

O segundo modo é, como havíamos dito, aquele baseado nas diferenças entre os homens; pois, mesmo se admitimos, por hipótese, que os homens são mais dignos de crédito do que os animais irracionais, verificaremos que mesmo nossas próprias diferenças, por si mesmas, levam à suspensão. Pois diz-se que o ser humano é composto de duas coisas, alma e corpo (...). Assim, no que diz respeito ao corpo, diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito às nossas peculiaridades constitutivas.

Mais adiante (HP I, 85) Sexto Empírico ressalta a possibilidade de que, se nos diferimos nesse aspecto corporal, é razoável pensar que também variemos no que diz respeito à alma, tomando como base a ciência da fisionomia da época a qual credita ao corpo uma extensão da alma. As divergências a nível de corpo, devido a uma diferença nos humores predominantes, se traduzem em impressões diferentes, que se desdobram em juízos diferentes. Para a visualização da questão da alma temos o seguinte: a existência de inúmeras teorias que se contradizem configurando uma guerra onde, como consequente cenário, se aniquilariam. Uma vez que divergimos na nossa capacidade de formular juízos, não escolhemos ou evitamos as mesmas coisas. Se, admitindo-se essa possibilidade carregada de narcisismo, é o homem que diz a verdade acerca do real, colocamos a seguinte questão: que homens dirão a verdade acerca da realidade, já que divergimos de nós mesmos? Só podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si, pois, caso tentássemos o contrário, cairíamos no seguinte âmbito: o das precipitações e contradições constantes. A felicidade em viver tal cenário, para o cético, é a esperança de, através da epoché, atingir a ataraxia. A suspensão e o contínuo pesquisar são o resultado dessa realidade acerca da qual o cético prefere se calar.

O terceiro modo de Enesidemo foca-se no individual: a partir da constituição corporal que o homem possui, ele encontra-se diante de contradições apreendidas pelos sentidos. Segue-se, então, a impossibilidade de dizer o que, por exemplo, é agradável ou desagradável, ou seja, de dizer sua natureza através de juízos formulados por relatos de sentidos que se contradizem o tempo inteiro, restando-nos, somente, o falar acerca do que se apresenta, sem dogmatismos. É cogitada, também, a possibilidade da existência de outras qualidades caso possuíssemos outros sentidos, pois (HP I, 97) percebemos apenas aquelas qualidades que somos capazes de apreender. Com ou sem a existência de outros sentidos, a natureza dos objetos percebidos não é evidente. Da mesma forma, segundo Sexto, o pensamento pode cair em contradição e erro: em meio aos julgamentos fornecidos por confusas sensações, que acreditamos apreender por pensamento, por que acreditamos que eles atingem o exterior? Somos levados, de todo modo, à suspensão.

O quarto modo de suspensão começa a ser explorado, precisamente, em HP I, 100; focando-se agora em qualquer um dos nossos sentidos. Tal tropo é colocado, por Sexto Empírico, da seguinte maneira:

Este modo baseia-se, como dizemos, nas “circunstâncias” e, com este termo, queremos indicar condições ou disposições. Este modo, dizemos, lida com estados que são ou naturais ou não-naturais, tais como estar acordado ou estar dormindo; com condicionamentos devido à idade, ao movimento ou ao repouso, ao amor ou ao ódio, ao vazio ou ao preenchimento, à embriaguez ou à sobriedade, com predisposições tais como confiança ou medo, sofrimento ou alegria.

A genialidade do citado tropo é de espantar. As possibilidades daqueles que procuram um critério de verdade para suas demonstrações ficam cada vez mais escassas, pois viu-se o seguinte movimento: partindo do conflito entre as apreensões das diferentes espécies para o conflito das apreensões dos diversos homens; depois, para o conflito entre as contradições produzidas pelos órgãos dos sentidos do indivíduo; e, por último, o conflito das apreensões produzidas sob diferentes condições e disposições do indivíduo. O que Sexto ressalta no quarto modo é a constatação de que as coisas nos afetam de diferentes maneiras quando perpassamos por diferentes estados. Esses juízos vãos, que formulamos para descrever a realidade mesma das coisas, estão à deriva de oscilações subjetivas, pois o fenômeno - ou seja, aquilo que aparece - pode nos afetar mais, ou menos, agressivamente de acordo com a nossa maior, ou menor, vulnerabilidade. Sempre nos encontramos em alguma circunstância, pois nunca estamos fora do seu campo de abrangência. Tal constatação ressalta uma impossibilidade de imparcialidade, pois em qualquer espécie de afirmação ou negação, já o fazemos dentro do mencionado campo, privilegiando, sempre, nossa percepção e, depois, nosso julgamento.

As circunstâncias mencionadas na passagem destacada remetem à necessidade de se ter uma preferência por uma determinada circunstância, esta tomada como parâmetro dos julgamentos. Podemos tomar uma circunstância, ou impressão, como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117): sem crítica e provas ou com crítica e provas. Nos dois casos, chegaríamos à conclusão de que ambas não se distanciam muito, pois ao tomarmos o segundo caminho precisaríamos de um critério para validar nossa crítica ou demonstração. A exigência de tal critério nos traz a necessidade de prová-lo também, pois ele deve mostrar-se verdadeiro através de razões compreensíveis. Entretanto, para validar tal critério, nós precisaríamos de um outro critério, e, assim, iríamos ao infinito sem provar, realmente, coisa alguma. Tanto o critério quanto a prova, portanto, são indignos de confiança, pois estão envolvidos em um jogo de raciocínio circular; sendo assim, não podemos deles tirar nossa prova para garantir que a impressão A, sob um estado, nos diz mais sobre a realidade do que a impressão B. Além disso, um estado não-natural é natural entre elementos não-naturais. A suspensão do juízo acerca da natureza das realidades externas é o resultado desse conflito de percepções e pensamentos.

Importante destacar o fato de que a epoché pirrônica é mais radical que a epoché de Sexto Empírico por uma pequena diferença: enquanto Pirro não via razão alguma para estabelecer uma hierarquia entre os diversos comportamentos humanos, pois todas as existências se equivalem, Sexto Empírico preconiza um modo de vida “empírico”, governado pelas lições da experiência[2]. Sexto, dessa maneira, defende a distância entre o ser das coisas e o seu parecer, afirmando que nos relacionamos somente com o fenômeno:

O fenomenismo de Sexto revela-se formulado em termos claramente dualísticos: o fenômeno torna-se a impressão ou alteração sensível do sujeito e, como tal, é contraposto ao objeto, à “coisa externa”, ou seja, à coisa que é diferente do sujeito, sendo pressuposta como causa da alteração sensível do próprio sujeito (...). Como mera alteração do sujeito, o fenômeno não resume em si toda a realidade, deixando fora de si o “objeto externo”, o que é declarado, senão como incognoscível de direito, pelo menos como não conhecido de fato.[3]

Frente aos sistemas dogmáticos, o cético poderia ser até chamado de fraco. Entretanto, sua própria conduta o torna imune quando as “verdades” são abaladas, pois para ele nada é ruim ou bom por natureza. O cético está tão vulnerável às necessidades quanto o dogmático, porém, com o auxílio da epoché e da posterior ataraxia, ele não sofre duas vezes, numa mesma circunstância e ao mesmo tempo, como os dogmáticos, a saber: pela necessidade mesma e pelos juízos que formulam acerca dela.

Referências Bibliográficas:

-EMPÍRICO, SEXTO. Hipotiposes Pirrônicas, Livro I. Tradução livre de Peter R. de Oliveira, Rio de Janeiro: 2005.

-HUISMAN, D. Dicionário dos Filósofos São Paulo: Martins Fontes, 2001.

-HUISMAN, D. Dicionário de obras filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2002

-PORCHAT PEREIRA, O. “Saber Comum e Ceticismo”, Manuscrito, vol. IX, nº. 1, Abril de 1986, pp. 143-59.

- REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol I, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990.


[1]PORCHAT PEREIRA, O. “Saber Comum e Ceticismo”, Manuscrito, vol. IX, nº. 1, Abril de 1986. p. 145.

[2] HUISMAN, D. Dicionário de obras filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 191.

[3] REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990. p. 318-19.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

África: um resgate de sua história para a compreensão de nossa identidade


África: um resgate de sua história para a compreensão de nossa identidade

Não é novidade que, na história tradicional, modelos são desvalorizados em prol de outros considerados "mais" importantes, "mais" adequados e "mais" civilizados. A história da África (especificamente a subsaariana) foi, e continua sendo, em muitos centros de pesquisa uma matéria a ser isolada e ignorada. Entretanto, em meio a afirmações escandalosas que postulavam a inexistência de uma história antes da chegada dos europeus, houve mobilizações para o resgate de relatos dessa história obscura e quase perdida.

As obras Short History of Africa e Old Africa Rediscovered, em meados da década de cinquenta, influenciaram na visão de que o continente estava saindo do domínio colonial. Temos aqui uma visão muito mais rica acerca da história africana e um importante acontecimento na história do pensamento: admitiu-se que antes dos europeus muito já tinha ocorrido, como mudanças sociais e invenções, e buscou-se o estabelecimento de relações entre os diversos relatos e documentos que surgiram em conseqüência de sua exploração, sem desconsiderar o novo e riquíssimo horizonte que se abria aos novos (ou renovados) olhares.

Ao mesmo tempo desta redescoberta da África em pelo século XX por parte, principalmente, dos historiadores europeus, a própria África em processo de independência política enxergou o quanto indispensável era a retomada de sua história:

O melhor conhecimento do passado tornara-se indispensável à unidade, à segurança e à auto-estima dos novos estados que tinham, com as exceções da Etiópia, de Ruanda e de Burundi, sido desenhados por circunstâncias do colonialismo e eram acoimados por isso de artificiais, como se não tivessem também surgido da volubilidade da política, das vicissitudes dos matrimônios e das alianças da imposição pela força, países como a França, o Reino Unido, a Espanha e a Itália. [1]

Ao mergulhar nessa história obscura, das antigas nações africanas, fez-se uma abordagem muito parecida com a feita acerca da Antiguidade e da Idade Média européia. Dos relatos que vieram depois, temos no século IX os de alguns viajantes e árabes, porém é no período das grandes navegações que encontramos uma gama de relatos do cenário africano. Entretanto, tais relatos dos marinheiros, comerciantes, aventureiros etc, são carregados de preconceitos e arrogância, embora fantásticos no que diz respeito aos detalhes que descrevem a imagem vivida. É importante ressaltar que os relatos foram feitos por pessoas de diferentes posições sociais, desde padres em missões até escravos que rememoravam seus ancestrais.

Alberto da Costa e Silva enxerga como documentos extremamente valiosos as anotações dos escravos, na América e na Europa, sobre suas vidas no seu continente de origem, o que, por sua vez, trouxe ao cenário do interesse pela história africana o modo de vida dos diversos povos que lá viviam. Outro aspecto a considerar é a presença de duas figuras principais, que se mostraram dominantes enquanto vigorava o domínio europeu colonial: a figura do explorador e a do administrador. Aqueles faziam anotações à medida que iam desbravando o continente e quanto a esses:

Quanto ao administrador colonial, tinha ele entre suas tarefas a de produzir relatórios sobre as gentes de quem cobrava impostos. Muitos desses funcionários imperiais deram-se á tarefa com zelo; e alguns, com, mais que zelo, paixão. A eles, e aos missionários, médicos, engenheiros, professores primários ou de liceu, escriturários e militares que os acompanharam, devemos que se registrassem as genealogias e a história oral de vários reinos e que saíssem da penumbra algumas das crônicas tradicionais de povos que desde muito sabiam o que era a escrita. [2]

Isso tudo acarretou a imersão na cultura africana, pois para que essa interação pudesse prosperar convinha um esforço para estar dentro da cultura. E isso significou uma familiarização. Aqui, também, muito se aprendeu. O que havíamos ressaltado antes foi o fato de que o interesse pela história desse continente foi despertado em seu povo (ou “em seus povos”) durante as pressões do europeu e de seu sistema esmagador de domínio sobre o continente. Isso pode nos levar a crer que o impacto europeu, sob essa perspectiva, incitou os africanos a buscarem a sua própria história.

Buscamos explicitar que muita bibliografia histórica sobre a África existe e que já é de longa data, porém é importante deixar claro que uma historiografia, propriamente, africana só viria a surgir depois da Segunda Guerra Mundial. Marca assim, notável presença em estudos norte-americanos e europeus- tanto quanto africanos- dessa história, até então, deixada completamente de lado. A questão que paira sobra os centros de estudos e de levantamentos bibliográficos e históricos brasileiros é a seguinte: “e quanto ao Brasil?”.

Isso porque não vemos em nosso país o mesmo entusiasmo em explorar tais possibilidades de pensamento e de interpretação da identidade de um povo. Por exemplo, nós estamos nos esquecendo da “África que tínhamos em nossas cozinhas”, algo grave para uma cultura popular, pois, nesse aspecto, muitos ensinamentos são transmitidos oralmente. A casa, refúgio, senzala ou cabana de um africano carregou, aqui no Brasil, traços que gritam uma cultura latente até os dias atuais: estudando sobre a história da África estaremos esclarecendo a nossa própria história e, consequentemente, empreenderemos uma renovada busca da identidade brasileira, pois não se entende o Brasil sem a África. Os navios negreiros trouxeram muito mais do que pessoas para serem exploradas no Novo Mundo: todo um legado histórico atravessou o Oceano Atlântico e chegou até nós. Nas palavras de Agostinho da Silva, na metade do século XX, “É necessário e urgente que se estude, no Brasil, a África”. Temos que visitar nossos parentes próximos e, também, investir na pesquisa acadêmica para garantir que não nos esqueçamos de nossa história, ou seja, a que também pertence aos africanos.

Bibliografia:

SILVA, Alberto da Costa e. “A história da África e sua importância para o Brasil”. In: Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ Nova Fronteira, 2003.


[1] SILVA, Alberto da Costa e. “A história da África e sua importância para o Brasil”. In: Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ Nova Fronteira, 2003. p. 230.

[2] Ibid. p. 232-33

terça-feira, 21 de julho de 2009

Claudius Hermann-O Filme


Olá,
Dedico essa postagem ao vídeo que fiz com um grupo de trabalho no meu 2º ano do ensino médio. Foi incrivelmente divertido fazer esse trabalho. Espero que gostem. ^-^


Parte 1:
Colégio Pedro II- Unidade Humaitá II;
Turma 3201; 2006. Literatura. Gravado no auditório do colégio.
Baseado no livro "Noite na Taverna" de Álvares de Azevedo o filme conta a história de Hermann, um viciado em jogo. Nessa primeira parte veremos a grande paixão que uma mulher foi capaz de despertar em Hermann. Sua paixão por Eleonora vai se tornando doentia a ponto de fazê-lo arquitetar um plano para matar a sua sede de amor.
Continua na 2ª e última parte.
(obs: o começo não tem música).
http://www.youtube.com/watch?v=n4hh7I9O0Wo&feature=channel_page


Parte 2:
Colégio Pedro II.
Nessa segunda parte do filme veremos o ponto máximo da doentia paixão de Hermann. Após passar noites indo à casa do Duque Maffio, escondido, Hermann seqüestra sua amada e a leva para uma casinha distante. Ele acaba convencendo-a a ficar com ele, mas a história tem um final trágico.


Uma Estética da Existência


A Vida como Obra de Arte...

A questão da vida como obra de arte, antes de tudo, nos faz refletir sobre o papel que atribuímos à arte diante da existência humana e do próprio processo criador. Em tom de crítica, Nietzsche elucidará uma concepção divergente, daquela apresentada em O Nascimento da Tragédia, no que diz respeito à arte em seu Humano, Demasiado Humano. A questão que destaca essa ruptura é a de que, até então, a arte é uma forma de perpetuar a interpretação metafísica da existência. Representando o momento de ruptura com Wagner, Nietzsche abandona suas concepções metafísicas da arte afirmando que a vida humana não pode prescindir do consolo metafísico.
Em Humano, Demasiado Humano é notável sua crítica acerca da concepção tradicional de gênio e as implicações metafísicas na atividade artística. Tradicionalmente, o gênio foi elevado ao lugar que antes pertencia a Deus: o gênio é um ser iluminado, inspirado pelas musas e o próprio reflexo das ideias platônicas. O gênio, tal como o artista, seria um milagre da natureza, aquele que daria e enunciaria um caráter de inspiração em suas obras.
Pelo fruto da vaidade humana, esse ser "dotado" é colocado sempre em destaque, um exemplo do que nunca poderíamos ou poderemos ser. Aqui não haveria competição, mas sim contemplação, deleite. Para Nietzsche, nesse momento, o artista é um ser infantil, aquele que parou no tempo no momento de seu suposto impulso artístico. Agora o gênio seria fruto de um intenso e eloquente trabalho e não mais da inspiração divina. Entretanto, o enfoque que pretendemos dar é a relação com a obra de arte e de como ela "vem a surgir".
No parágrafo 174 de Humano, Demasiado Humano II intitulado "Contra a arte das obras de arte", Nietzsche retoma o caráter embelezador da arte, mas não exaltando de maneira positiva a inércia e a contemplação que vivemos diante de uma obra acabada. Haveria algo muito mais importante e a obra, somente um apêndice, seria a consequência, "o que restou", desse aspecto tratado a seguir: a vida como obra de arte.
O sentido da arte ultrapassa o conceito de obra. A arte vinculada à ideia de obra (o que foi materializado) é apenas um apêndice da arte de viver. Exalta, aqui, uma criação permanente e não um voltar-se ao "verdadeiro eu". A vida bela é aquela que nunca se acaba, uma história sempre em construção significante.
A obra de arte seria fruto do excedente da arte de viver, porém o que enxergamos é uma inversão: a obra é tomada como a verdadeira arte, e não a vida. Erroneamente pensamos que é a partir da obra que melhoraremos a vida, e não o contrário. "Tolos que somos!", diz Niezstche, pois perdemos o sentido da beleza e da arte.

sábado, 18 de julho de 2009

Frase


La flamme nous force à imaginer.

(Gaston Bachelard, La flamme d'une chandelle)

O Momento Cartesiano


O Momento Cartesiano - uma pequena nota

O "momento cartesiano", segundo a compreensão foucaultiana, mostra-se importante para o entendimento do cenário no qual a epiméleia heautoû foi desvalorizada. O momento cartesiano requalificou filosoficamente o gnôthi seautón, instaurando a evidência como critério de verdade e garantindo a existência do sujeito via pensamento.
Houve, assim, uma dissociação forte entre teoria e prática, em contraste com a possibilidade antiga onde para se ter acesso à verdade era necessário um certo modo de vida. O cartesianismo excluiu o cuidado de si do pensamento filosófico moderno. Com essa separação, cairemos de súbito na antiga e atual questão: o que é filosofia? O que, agora, a diferencia da experiência ampla da Antiguidade, na qual ela estava vinculada à espiritualidade?
A filosofia, distinguida da espiritualidade, é definida como o questionamento sobre a capacidade humana de conhecer, sobre o que permite que o sujeito chegue à verdade, denotando uma exaltação da razão, da reflexão, da teoria.
A espiritualidade seria o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc, calcando-se na idéia de que o sujeito é mais amplo que o conhecimento e de que o acesso à verdade traz efeitos para o próprio ser do sujeito.

Resgatar ou esconder: o que devemos fazer com essa relação?

Bibliografia:

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

GROS, Frédéric. "O cuidado de si em Michel Foucault". In: RAGO, Magareth; VEIGA NETO, Alfredo. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 125-138.

Algo de Perturbador

Algo de Perturbador no Cuidado de Si?

O que haveria de perturbador no princípio do cuidado de si estaria vinculado à própria interpretação da questão do "retorno e conversão a si". O "culto a si mesmo" soa como uma espécie de desafio e de bravata, uma vontade de ruptura ética, uma espécie de dandismo moral, afirmação-desafio de um estádio estético e individual intransponível. Entretanto essa "exarcebação" do "si" pode soar como uma expressão melancólica advinda de um fracasso no coletivo, representando, assim, uma triste volta sobre si de um indivíduo incapaz de ter sucesso em uma moral coletiva. Esse impasse nos impossibilitaria de enxergar o cuidado de si com um valor positivo. Outros paradoxos evidenciados por Foucault são os seguintes:
- É a partir da injunção "ocupar-se consigo mesmo" que se constituíram as mais austeras, as mais rigorosas, as mais restritivas morais que o Ocidente conheceu. O preceito teve sempre um sentido positivo na sua origem, em contraste com o egoísmo atribuído nos últimos séculos.
- O cuidado de si reapareceu mascarado por determinadas morais, como a cristã e a moderna não-cristã, porém reajustado: o cuidado de si foi convertido para uma ética geral do não-egoísmo, tendo como eixo central a renúncia a si ou uma obrigação para com os outros. O valor original do cuidado de si mudou ao longo da história.
Segundo Frédéric Gros, "os exercícios cristãos de confissão e outras práticas monásticas de direção desenham um mesmo horizonte de abnegação e de sacrifício, de renúncia de si". O cuidado de si passou por algumas transformações ao longo da história: no florescimento da tradição judaico-cristã, a conversão já não é mais para o "si", mas visa uma conversão a Deus como único meio de apreensão da verdade. Esse modo de vida estabelecido por Deus tem como um de seus mais importantes eixos a confissão, ao memso tempo que a valorização do silêncio.
Foucault se interessa como o cuidado de si (as práticas de subjetividade, a constituição do sujeito e a construção de uma vida bela) se relacionará com o tecido social, com os outros. A noção do cuidado de si constituiria um motor da ação política e teria como objetivo o cuidado com os outros. O cuidado de si é pré-condição para o cuidado com os outros, evidenciando a idéia de prosperidade entre todos os cidadãos: a felicidade da pólis.
Nota-se então duas características essenciais no cuidado de si: ele é uma atividade ética (diz respeito a uma atitude do indivíduo consigo mesmo) e também uma atividade política (diz respeito a uma atitude do indivíduo com os outros). "O cuidado de si não é uma atividade solitária, que cortaria do mundo aquele que se dedicasse a ele, mas constitui, ao contrário, uma modulação intensificada da relação social. Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular de outro modo esta relação com os outros pelo cuidado de si. É preciso notar, também, que o cuidado de si é muito pouco excludente do outro, que, aliás, ele supõe", constatou Frédéric Gros.


Bibliografia:

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

GROS, Frédéric. "O cuidado de si em Michel Foucault". In: RAGO, Magareth; VEIGA NETO, Alfredo. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 125-138.

O Homem do Cuidado

Sócrates

Foucault remete sua hipótese, de que o preceito délfico gnôthi seautón é uma técnica do cuidado de si, ao diálogo platônico "Apologia de Sócrates". Pela questão do tipo de vida levada pelo filósofo e a compatibilidade do discurso do mesmo, caracteriza- se um ponto fundamental analisado por Foucault: a parrhesia, ou seja, o dizer verdadeiro, onde a relação filosófica sujeito/verdade dependia da compatibilidade do discurso e do pensamento com a atitude.
Segundo Foucault, "com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante (...)". Para um filósofo greco-romano, o cuidado de si abriria inúmeras possibilidades de modos de vida e de acesso à verdade. O filósofo quer ter uma vida diferente, clama pela ética e pela auto-transformação, onde o "si" desempenhará um papel fundamental. A busca da verdade exige um certo modo de vida do sujeito que diz a verdade, além das práticas que permitem essa auto-transformação. A verdade estaria nessa relação.
Em Sócrates, e este filósofo é chamado como "o homem do cuidado", o gnôthi seautón aparece atrelado à epiméleia heautoû ou até mesmo subordinado: o filósofo tinha como ofício incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados consigo e não descurarem de si. Sócrates, ao ser acusado, não mudou seu discurso, continuou afirmando que não deixaria de filosofar. Levanta para nós o problema da atitude: falar de acordo com o viver e viver de acordo com o que é falado. É essa a conjuntura que constituiria a parrhesia: uma relação entre o falante e aquilo que se diz.

Bibliografia:

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A Hermenêutica do Sujeito


A Hermenêutica do Sujeito - Uma Visão Geral

Na primeira aula do curso "A Hermenêutica do Sujeito", proferido por Foucault, a principal questão levantada refere-se ao próprio nascimento da filosofia. Partindo do estudo de uma nova possibilidade de interpretação do preceito délfico "gnôthi seautón" (conhece-te a ti mesmo) à sombra de um preceito mais abrangente, a saber, a "epiméleia heautoû" (cuidado de si), Foucault faz uma genealogia das relações entre sujeito e verdade.
Apropriando-se do cuidado de si e usando-o como parâmetro, o gnôthi seautón é visto como uma questão fundadora na filosofia, mas seu significado não possuiria o valor que lhe conferimos, ou seja, o "conhece-te a ti mesmo" no sentido filosófico do termo. A concepção de que a filosofia não é algo exclusivamente do campo cognitivo é, então, ressaltada.
Segundo Foucault, "o que estava prescrito nesta fórmula não era o conhecimento de si, nem como fundamento da moral, nem como princípio de uma relação com os deuses". A filosofia seria, antes de tudo, um modo de vida mais brilhante, mais feliz. O pensamento filosófico "serviria" como uma terapia diante do sofrimento, da angústia e da infelicidade. A razão pela qual a epiméleia heautoû foi desvalorizada na tradição filosófica será um dos alvos instigantes desse curso de Foucault e para isso fará um levantamento histórico, visitando perspectivas que fugirão das interpretações tradicionais. Roscher e Defradas trouxeram novas propostas de interpretação do terceiro preceito délfico (o gnôthi seautón, ou "conhece-te a ti mesmo") que foram muito relevantes para a pesquisa foucaultiana, pois representam, de certa maneira, um contraponto à exaltação do caráter cognitivo de tal preceito.
Segundo Roscher (1901), o gnôthi seautón significa: "no momento em que vens colocar questões ao oráculo, examina bem em ti mesmo as questões que tens a colocar, que queres colocar; e, posto que deves reduzir ao máximo o número delas e não as colocar em demasia, cuida de ver em ti mesmo o que tens precisão de saber". Para Defradas (1954), o "conhece-te a ti mesmo" seria o preceito segundo o qual é preciso continuamente lembrar-se de que, afinal, é-se somente um mortal e não um deus, devendo-se, pois, não contar demais com sua própria força nem afrontar-se com as potências que são as da divindade". Ambas as interpretações exigem um auto-exame, uma reflexão acerca de maneiras, de ações que tomamos no mundo e austeridade. Encontramos "um esforço de vigilância que intensifica a imanência a si mesmo", segundo Frédéric Gros. Isso porque conhecer-se não é se dividir e fazer de si um objeto separado que seria preciso descrever e estudar, pois o sujeito é mais amplo que o conhecimento. Assim como a filosofia.
Foucault pensa a filosofia vinculada à espiritualidade, pois aquela possuí heranças das chamadas “tecnologias de si” ou “artes da existência”. Na introdução de sua História da Sexualidade 2- o uso dos prazeres, diz Foucault: “deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”.
Entende-se aqui por espiritualidade como o conjunto de buscas, práticas e experiências. Assim completa Foucault na citada introdução: “essas ‘artes da existência’, essas ‘técnicas de si’, perderam, sem dúvida, uma certa parte de sua importância e de sua autonomia quando, com o cristianismo, foram integradas no exercício do poder pastoral e, mais tarde, em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico.


Bibliografia:

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

GROS, Frédéric. "O cuidado de si em Michel Foucault". In: RAGO, Magareth; VEIGA NETO, Alfredo. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 125-138.

FOUCAULT, M. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres/ Michel Foucault; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

MESTRE ECKHART E A RELAÇÃO DIRETA ENTRE CRIATURA E CRIADOR


MESTRE ECKHART E A RELAÇÃO DIRETA ENTRE CRIATURA E CRIADOR

O dominicano Johannes Eckhart, dito Mestre, nascido em 1260, viveu um momento onde as divergências entre fé e razão foram palco de um conflito no qual a questão central foi a relação de fragilidade teórica entre ambas. Nesse cenário, a filosofia, até então, esteve submetida à teologia, porém a consciência de que esses dois caminhos se desencontravam suscitou dúvidas na tradição, pois ao observarmos o plano do saber racional (clareza e evidência lógica) e o plano da doutrina teológica (orientado pela moral e baseado na luminosa certeza da fé) [1] nós enxergaríamos uma “perfeita assimetria”. Isso porque o âmbito das verdades reveladas é radicalmente subtraído ao reino do conhecimento racional, eclodindo, assim, a concepção de que a filosofia não é mais serva da teologia, pois esta se garante pela força de coesão da fé [2]. A razão não mais poderia oferecer suporte algum de justificação para a fé. Logo, a teologia racional viveria uma forte crise, dando espaço para o reflorescimento do misticismo. Digo reflorescimento, pois ele sempre sobreviveu, mesmo durante o longo período medieval. Tentaremos elucidar, em linhas gerais, a importância de Eckhart e seu papel nesse movimento inovador que, de certa forma, contribuiu para os ideais da Renascença.

Mesmo com o papel desempenhado pela razão, e pelos caminhos que ela poderia empreender, o fim seria o retorno e união a Deus. A crença até aqui era a de que, por razão e fé serem dons provenientes de Deus, a contrariedade que explicitei acima era inconcebível. Entretanto veio a crise. Sucumbida a confiança nas pretensões escolásticas de que a fé seria justificada pela razão, a questão foi exaltada junto ao misticismo. Esse passou a ser o único caminho praticável para o restabelecimento de uma relação direta entre a criatura e o criador, justificando, desse modo, a fé. Aqui podemos explicitar a herança neoplatônica: uma experiência sobrenatural e misteriosa que desperta o sentimento de uma união com o divino, em outras palavras, que nos dá acesso à realidade divina.

Eckhart foi o expoente principal do misticismo especulativo alemão, situando-se em meio à corrida imposta pelos homens de fé, na qual o grande objetivo era o de restabelecer o contato entre homem e Deus. No misticismo especulativo, podemos explicitar duas características fundamentais. É chamado de misticismo porque postula que Deus está além de nossa compreensão conceitual e que é impossível que o conheçamos racionalmente; porém, sem Ele, não somos nada. A outra característica diz respeito ao caráter filosófico, que se alimenta, principalmente, de fontes neoplatônicas sob a influência de Proclo, construindo uma cadeia lógica de proposições que representavam o esforço para encontrar Deus para lá das criaturas, que em si mesmas não seriam nada:

Se Deus é o ser porque é Uno, e se nada além de Deus é uno, nada além dele é ser. Portanto, a criatura é um puro nada, pelo menos no sentido de que, por si mesma, ela não é. O que nela pode receber o título de ser se reduz ao que nela se manifesta da fecundidade divina. O que caracteriza a criatura considerada em si é sua nulidade, mas a criatura é, ao contrário, na medida em que depende do intelecto e do intelectual (...). [3]

Em Eckhart, as criaturas, em si mesmas, mesmo que possuam o divino, não passam do puro nada; e, por isso, o amor às criaturas e a busca incessante do prazer deixam como maiores legados a tristeza, a dor e a insatisfação. Teríamos que adotar outro caminho se pretendemos a união com Deus. Para Eckhart, esse caminho, com muitas controvérsias na definição do termo, se traduz no que chamou de desprendimento. Abgeschiedenheit: essa palavra está em conexão com a disponibilidade plena, com liberdade de e para, com desprendimento, pobreza, despreocupação, esvaziamento de si, perfeito equilíbrio interior [4]. O desprendimento sincero está acima de tudo e desligado de todas as criaturas. Esse caminho se torna evidente quando afirmamos que o lugar natural de Deus é a unidade e a pureza. A unidade explica-se porque a unidade de todas as coisas radica na unidade de Deus, pois Ele é a realidade última, superando o ser, a bondade, a justiça e o amor. Ao despi-lo de todas essas vestimentas O encontraríamos repousando em si mesmo, em toda sua pureza e unidade. Nas palavras do próprio Eckhart, “todos os números dependem do um, mas o um não depende de ninguém: assim o é com Deus” [5]. Por isso, é colocado em questão o próprio fato de se é possível falarmos de virtude quando estamos falando em Deus.

Quando desprendidos, Deus entrega-se aos nossos corações, pois o desprendimento é a morada natural d’ Ele. Seguiríamos, caso contrário, a um mundo de dor se adotássemos uma busca engendrada no sofrimento de outras coisas que não Deus para, assim, atingi-Lo. Esse é o caminho contra o desprendimento e jamais repousaríamos em nós mesmos; consequentemente, não nos assemelharíamos a Ele. No desprendimento, há uma ruptura na aparente barreira entre Deus e homem; somos iguais. Nós assumiríamos o próprio ser de Deus, na imobilidade e imutabilidade, em uma experiência de eternidade:

(...) O verdadeiro desprendimento nada mais é do que o espírito manter-se inabalável diante de qualquer sentimento que sobrevenha, seja de amor, de sofrimento, de consideração, de difamação ou de injúria, assim como uma montanha de chumbo permanece inabalável diante de um vento fraco. Esse desprendimento inabalável eleva o ser humano até a maior igualdade com Deus, porque Deus é Deus por causa de seu desprendimento inabalável, e o desprendimento é a origem de sua pureza, de sua simplicidade e de sua imutabilidade (...) [6]

Polemiza, seguindo essa linha de pensamento, com a questão da oração: a verdadeira oração, para Eckhart, nada pede e nada espera em troca. Afirmações como essa, ao longo de sua obra, representarão linhas de fuga na tradição e incomodarão autoridades, tais como as ideias de que Deus nasce de novo na alma desprendida e de que não devemos nos lamentar por nossos pecados, pois Deus já tinha conhecimento deles muito antes de nos criar. Aliás, não haveria muito menos uma vontade de criação: tudo já estaria presente na mente de Deus desde a eternidade. Foram exaltados, até aqui, a potencialização do espírito e o incondicionamento de tudo o que há. Não podemos deixar de citar que a questão do “nada querer para si” é muito importante, também, para o budismo e o taoísmo, importantes influências orientais sofridas por Eckhart. Ele luta contra a passividade e a materialidade, que se traduziriam em uma pobreza ontológica, alvo central do desprendimento, pois, temos que nos esvaziar. Nosso espírito precisa estar totalmente desprendido para que Deus se una a ele. O esvaziamento total do ser e a renúncia aos apegos aos diversos valores se fazem necessários para que alcancemos a verdadeira plenitude.

Bibliografia:

- Dicionário dos Filósofos/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

- Dicionário Básico de Filosofia/ Hilton Japiassú, Danilo Marcondes- 3ª ed. rev. e ampl.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

-ECKHART, Mestre. Sobre o Desprendimento e Outros Textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

-ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. E.ed. Bragança Paulista/Editora Universitária São Francisco, 2006.

-GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins fontes, 1995.

-História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média/ Giovanni Reale, Dario Antiseri- São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Filosofia).


[1] História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média/ Giovanni Reale, Dario Antiseri- São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Filosofia). p. 615.

[2] Ibid. p. 615.

[3]GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins fontes, 1995. p. 868.

[4] ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. E.ed. Bragança Paulista/Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 37.

[5] Ibid. p. 31.

[6] ECKHART, Mestre. Sobre o Desprendimento e Outros Textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 11.