sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

LIBERDADE E DETERMINISMO SOB TENSÃO: ESPINOSA E SARTRE


LIBERDADE E DETERMINISMO SOB TENSÃO: ESPINOSA E SARTRE

A vontade não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária.[1]

– Espinosa

Você é livre, escolha, quero dizer, invente[2].

– Sartre

A questão da liberdade da vontade ou livre arbítrio é um tópico fundamental na história da filosofia, representando um ponto de tensão entre inúmeras teses contrárias. Tal embate entre diferentes doutrinas e filosofias envolve, primordialmente, a questão da essência humana – dada ou não de antemão –, bem como a divergência quanto à constituição de um universo necessário ou contingente. O seguinte trabalho pretende tematizar, em linhas gerais, um possível confronto entre a perspectiva de Baruch Espinosa (racionalismo absoluto) e a de Jean-Paul Sartre (fenomenologia[3]), no que diz respeito à natureza e à liberdade humanas. Começaremos seguindo a linha cronológica da história da filosofia, abordando a problemática, primeiro, em Espinosa e, segundo, em Sartre. Nosso objetivo é o de mostrar a importância de tal discussão, uma vez que vivemos em uma era de enormes avanços técnico-científicos e de pesquisas genéticas onde o homem domina, cada vez mais, o seu meio e empreende, igualmente, uma busca dos segredos de uma suposta natureza que lhe seria própria.

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Espinosa insere-se em um real totalmente cognoscível. Sua obra magna, a saber, a Ética demonstrada à maneira dos geômetras representa seus esforços em conduzir o homem à verdadeira liberdade. É importante frisar que, em decorrência de seu racionalismo absoluto, a filosofia de Espinosa é partidária da inteligibilidade integral do real. A incompreensão dos eventos do mundo, por exemplo, seria fruto de uma ignorância das causas que convergiriam na constituição dos eventos do próprio mundo – o universo, para Espinosa, é necessariamente determinado por uma raiz única. A filosofia espinosista estabelece, em primeiro lugar, as causas para, depois, ir em direção aos efeitos: e essa causa, a causa primeira de toda a realidade, seria uma única substância absolutamente infinita – a Natureza, ou seja, Deus.

Seguindo o nexo necessário das causas, ou seja, os efeitos necessários decorrentes da natureza da substância absolutamente infinita, nós teríamos a constituição do homem como junção de uma modificação de dois atributos imanentes à própria substância. Esses atributos – que são os únicos que conhecemos, embora sejam infinitos –, o da extensão e o do pensamento, não se separariam da substância, estando de acordo com sua natureza. Cada atributo, por sua vez, pode somente produzir modalidades possíveis: ou seja, para Espinosa, a Natureza somente produz seres que, essencialmente, não possuem contradições. E se eles são finitos, não seria por uma contradição interna, mas sim porque são limitados por seres do mesmo gênero e, assim, impedidos de exercer sua natureza de forma livre – a saber, impedidos de perseverar em seu próprio ser. [4]

Espinosa não opõe a liberdade à necessidade. No homem, a atividade (a ação livre) só se dá a partir do momento em que ele exerce a sua natureza, constituindo-se não como causa inadequada, mas sim como causa eficiente de suas ações, o que significa agir sem ser coagido por causas exteriores à constituição de sua essência singular. A liberdade humana, assim, é entendida como uma autodeterminação – de si mesmo –, pois vê no homem uma essência pronta a se desenvolver e que está vinculada, necessariamente, a Deus. Ser livre seria agir de acordo com suas próprias determinações – livre, portanto, de crenças imaginárias, que nos levariam a padecer ao invés de agir.

Segundo Espinosa, um dos grandes preconceitos da tradição filosófica e religiosa de sua época foi o da crença no livre arbítrio. A vontade, para o filósofo, está vinculada à própria natureza do indivíduo e às causas que o originaram ou o afetaram:

A vontade, tal como o intelecto, é apenas um modo definido do pensar. Por isso, nenhuma volição pode existir nem ser determinada a operar a não ser por outra causa e, essa, por sua vez, por outra, e assim por diante, até o infinito. Caso se suponha que a vontade é infinita, ela também deve ser determinada a existir e a operar por Deus, não enquanto substância absolutamente infinita, mas enquanto possui um atributo que exprime a essência infinita e eterna do pensamento. Assim, seja qual for a maneira pela qual a vontade é concebida, seja como finita, seja como infinita, ela requer uma causa pela qual seja determinada a existir e a operar. Portanto, ela não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária ou coagida. (ÉTICA, I 32, dem.)

O livre arbítrio, assim, é uma ilusão da imaginação. Para Espinosa, não há um poder absoluto no que diz respeito à escolha, pois se um indivíduo escolheu uma determinada alternativa, jamais poderia ter escolhido outra. Não há espaço para o acaso: a escolha só poderia ser outra, se a ordem da realidade também fosse outra, o que é absurdo. Não podemos falar, então, em mundos possíveis ou em contingências: nós somente acreditamos no livre arbítrio porque ignoramos as causas que nos determinam a agir. Acreditamos na liberdade do desejo apenas porque, circunstancialmente, tomamos consciência de nossos apetites. A liberdade humana, porém, existe – em um grau finito –, mas não se opõe jamais ao determinismo e à necessidade.

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Jean-Paul Sartre, por sua vez, segue um caminho nitidamente diferente. O existencialismo, filosofia a qual Sartre esteve à frente, combate todo e qualquer determinismo no que concerne à liberdade humana. O determinismo ganhou muita força com o racionalismo do século XVII: nele o homem já nascia com uma essência pré-estabelecida. Isso significa que o homem realizaria uma idéia anterior a sua própria existência no mundo, concretizando uma natureza concebida anteriormente por um intelecto divino. O ser humano teria, assim, uma essência a cumprir: estipulada não por ele, mas por um Ser maior.

A grande querela do existencialismo contra o determinismo no que diz respeito à liberdade humana é a afirmação de que “a existência precede a essência”; subvertendo, assim, a tradicional formulação de que “a essência precede a existência”. Para Sartre, não há um Deus que produza uma essência humana, ou melhor: “ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão [...]. Não que acreditemos que Deus exista; pensamos antes que o problema não está aí, no da sua existência[5]. O homem não se constitui como um objeto qualquer, apesar de estar determinado pelas mesmas leis da física que os demais corpos. Adentramos, aqui, segundo Sartre, em um novo terreno que não se manifesta no reino dos objetos: o da consciência.

A consciência é uma constante recusa de ser objeto. Isso significa que ela é recusa de ser essência, um constante preencher-se de conteúdo exterior a ela (conteúdo que corresponde aos objetos com essências dadas – objetos que Sartre chamará de seres em-si). A consciência não tem uma essência prévia, sendo somente consciência de algo que está fora dela mesma. Compreende-se, então, a afirmação sartreana de que “a existência precede a essência”: somente na existência é que há essa possibilidade de encontrar objetos que são o que são. Fora disso a consciência (o homem) nada é:

O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja depois desse impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. (SARTRE, 1973, p. 12).

Um ponto crucial é a supressão de Deus. Segundo o filósofo existencialista, não há parâmetros dados para estabelecer bem e mal, já que tudo é fruto da decifração humana. Sartre nos diz que não existe uma base segura na qual o homem possa se apoiar que não seja ele mesmo. O homem é um ser que se faz e que se refaz a cada momento e que vive a liberdade como uma espécie de “condenação” (uma condição): logo, não é nada mais do que escolheu ser.

Existência e liberdade andam juntas. A consciência existe diferentemente de um objeto (esse, como já dito, não tem escolha alguma em ser algo diferente do que é). A consciência, porém, constitui-se como um projeto que se lança para além de si mesma, negando a determinação proposta pelo racionalismo absoluto. Sartre busca nos mostrar o homem livre de seus determinismos, exaltando a idéia de situação: somos e estamos, por exemplo, “jogados” numa época e situação social, mas sempre podemos escolher – sendo que o valor que atribuímos à situação depende unicamente de nossa liberdade. Em qualquer possibilidade somos livres para a constituição de um projeto.

A filosofia determinista postulou um somatório de causas que convergiriam em um indivíduo, porém não o colocou como o autor mesmo de seus atos, acreditando, assim, na existência de uma natureza humana imutável:

Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. (SARTRE, 1973, p. 15)

A culpa para os fracassos humanos, porém, foi delegada à natureza humana ou aos outros, sendo que – no caso da religião – o homem poderia, ainda, ser recompensado por um deus. Dessa maneira nos colocamos na perspectiva da má-fé, onde nos eximimos de nossa liberdade (logo, de nossa existência), delegando-a ao outro – e onde também tentamos nos enxergar como coisas determinadas e fechadas em-si. Isso, para Sartre, é absurdo, pois a consciência constitui-se como um para-si, ou seja, algo que só é consciência ao ser consciência de algo, uma ultrapassagem do estatuto de ser coisa.

A liberdade, para Sartre, ganha uma conotação um tanto radical e diferente da abordagem determinista, na qual – por exemplo, na filosofia de Espinosa – ser livre corresponderia a exercer uma natureza própria (isto é, uma essência) de forma determinada e causal, contra as coações advindas do exterior. No caso da abordagem determinista, ser livre significaria desviar-se o máximo possível de uma vida marcada pelo signo da passividade, onde buscaríamos ser o “agente de nossas próprias ações”. Na filosofia sartreana, a liberdade tem que ser absoluta ou nada pode ser. Não existe meio termo: “o homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre livre, ou não o é” [6]. Mesmo no caso do padecimento, optamos por padecer. Somos livres ou não somos livres.

Sabemos – e essa é uma ideia capital no existencialismo – que existência e liberdade andam juntas no que se diz respeito ao homem:

Desse modo, a liberdade é para Sartre a condição indispensável e fundamental da ação. De fato, toda ação implica para a consciência a possibilidade permanente de operar uma ruptura com seu próprio passado. Contrariamente às abordagens da Sociologia e Psicologia empíricas, a ação não é provocada por uma causa necessária anterior. Toda ação é afirmação de um sentido, é intencional. A intencionalidade implica necessariamente o tema da temporalidade: visando um fim, a consciência que age visa um inexistente, um irreal (futuro) que ela deseja instaurar. Portanto, o que esclarece uma ação não é o retorno a um motivo anterior, passado, dado, acabado, mas sim a antecipação de uma realidade futura. (PFEIL, 2008, pp. 153-54).

O existencialismo leva o homem ao centro de suas próprias ações, conscientizando-o da criação de suas próprias vontades e valores. Não há homem covarde, mas sim atos covardes, dirá Sartre. Entretanto, o que quiseram – segundo o filósofo – foi que se nascesse covarde e que se morresse covarde; que se nascesse heroi e que se morresse heroi. Para Sartre, nós nos construímos herois ou covardes, sendo que essa invenção é de nossa total responsabilidade. Sem uma natureza humana pré-estabelecida e “como uma folha em branco que se preencherá somente ao existir” foi dada ao homem chance de se assumir como responsável por tudo aquilo que fez. E isso inclui todo o seu universo, que é unicamente decifrado por ele.

***

Colocar a essência humana em questão nos leva a um caminho de intermináveis problemáticas concernentes à liberdade do homem. Não podemos remeter o termo “natureza humana” a um aparato estritamente biológico, mas ao que nos difere do reino mineral, vegetal e dos demais seres vivos – como fator primordial e instituidor da cisão homem/mundo – que é a consciência. O perigo, por exemplo, estaria em reduzir a consciência ao cérebro (ou o espírito à matéria), nos levando a uma atitude cientificista e, mais uma vez, a um imenso oceano de discussões, ainda vivo na filosofia e ciência contemporâneas.

Tal temática é tão ampla que permeia com grande força, por exemplo, a discussão em torno de conceitos como o de cultura. De forma ilustrativa, Edward Tylor – o primeiro a formular o conceito de cultura sob o ponto de vista antropológico [7] – procurou demonstrar que a cultura pode ser objeto de um estudo científico e sistemático, pois nela enxerga inúmeras regularidades – ou seja, causas – que permitiriam a formulação de leis. Para isso, considera a cultura como um fenômeno natural, apoiando-se nas ciências naturais:

Nossos investigadores modernos nas ciências de natureza inorgânica tendem a reconhecer, dentro e fora de seu campo especial de trabalho, a unidade da natureza, a permanência de suas leis, a definida sequência de causa e efeito através da qual depende cada fato. Apoiam firmemente a doutrina pitagoriana da ordem no cosmo universal. Afirmam, como Aristóteles, que a natureza não é constituída de episódios incoerentes, como uma má tragédia. Concordam com Leibniz no que ele chamou “meu axioma, que a natureza nunca age por saltos”, tanto como em seu “grande princípio, comumente pouco utilizado, de que nada acontece sem suficiente razão”. Nem mesmo no estudo das estruturas e hábitos das plantas e animais, ou na investigação das funções básicas do homem, são ideias desconhecidas. Mas quando falamos dos altos processos do sentimento e da ação humana, do pensamento e linguagem, conhecimento e arte, uma mudança aparece nos tons predominantes da opinião. O mundo como um todo está fracamente preparado para aceitar o estudo geral da vida humana como um ramo da ciência natural. ...Para muitas mentes educadas parece alguma coisa presunçosa e repulsiva o ponto de vista de que a história da humanidade é parte e parcela da história da natureza, que nossos pensamentos, desejos e ações estão de acordo com leis equivalentes àquelas que governam os ventos e as ondas, a combinação dos ácidos e das bases e o crescimento das plantas e animais. (TYLOR, 1871 apud LARAIA, 2009, pp. 30-31).

Com todas as suas faltas, essa pequena contraposição entre Espinosa e Sartre – no que concerne à liberdade e ao determinismo –, não pretende dar respostas finais ao tema. Por isso, a discussão está em aberto. Entretanto, pode valer como um propulsor para a formulação de novas questões, nos mostrando que muitas discussões aparentemente “velhas” – pois muito antigas e presentes na história da filosofia – apresentam-se, ainda, como atuais nos diversos campos de saber da contemporaneidade. São, portanto, dignas de uma revisitação.


Bibliografia:

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 24.ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.

PFEIL, L. C. A moral em Sartre: uma porta para o impossível? In: Sartre e seus contemporâneos. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2008.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

_________________. O ser e o nada. 17 ed. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


[1] Ética, I, p., 32.

[2] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 17 (Coleção Os Pensadores).

[3] Ou “ontologia fenomenológica” assim como enunciado em “O Ser e o Nada”.

[4] Sobre a “perseverança no ser”, diz Espinosa: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser” (ÉTICA, III, p., 6) e “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” (Ibid., p., 7). Tais proposições enunciam a tese do conatus (esforço, perseverança) que está intimamente ligada à questão da vontade na filosofia de Espinosa.

[5] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 28 (Coleção Os Pensadores).

[6] Idem. O ser e o nada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 545.

[7] Cf. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

2 comentários:

Robson Xavier disse...

ai mano coloca o meu blog ai no seu.
tambem tem muito de filosofia.

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obrigado!

Neto disse...

Olha ai cara. curti o teu blog
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