A CONCEPÇÃO DE DEUS E A LIBERDADE DA SUBSTÂNCIA NA FILOSOFIA DE ESPINOSA
Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.[1]
– Espinosa
A definição de Deus na Ética de Espinosa é de importância fundamental para a construção de seu sistema filosófico, uma vez nessa obra o filósofo adota a ordem sintética de exposição – partindo de uma causa absoluta em direção a seus efeitos. Essa definição de Deus (Deus-substância) – da qual se seguem as noções de atributo e modo – desemboca em proposições que subvertem o Deus antropomórfico da tradição judaico-cristã. Tais consequências custaram a Espinosa uma forte rejeição de sua comunidade, culminando em um anátema (pronunciado contra Espinosa em 27 de julho de 1656) que o amaldiçoou e o excomungou da nação de Israel. Não nos detendo, porém, em seus aspectos históricos, pretendemos percorrer a linha de raciocínio que constitui a base – o ponto de partida – da obra magna de um dos grandes racionalistas do século XVII, utilizando-nos da liberdade como paradigma que nos conduzirá ao objetivo de nosso trabalho, que é o de buscar a ideia de Deus na filosofia de Baruch Espinosa.
É importante ressaltar que Espinosa desenvolve sua Ética demonstrada à maneira dos geômetras pautando-se nos princípios de exposição da geometria euclidiana: parte, assim, de definições, axiomas e formula proposições sucedidas de demonstrações. Para o filósofo – defensor da inteligibilidade integral do real –, esse é o caminho que nos permite conhecer verdadeiramente a realidade: o método dedutivo, que busca as propriedades intrínsecas à ideia verdadeira, nos dando a coerência interna do pensamento e, também, apresentando-se como o viés pelo qual o real é conhecido por suas causas. Tal procedimento de busca da verdade, por sua vez, baseia-se numa inversão do tradicional princípio de causalidade: se, até então, “para todo efeito temos, necessariamente, uma causa”, para Espinosa “toda causa produz, necessariamente, um efeito”. Tal inversão, apesar de sutil, é de grande importância para a ordem sintética de exposição [2], já que Espinosa parte da causa sui: “por causa de si compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente”. [3]
A única causa sui que Espinosa admitirá, veremos, será Deus – sendo que Ele (Deus-substância) e Natureza (num sentido de totalidade) se confundem – constituindo, assim, fundamento de si mesmo e causa de toda a realidade possível. A esse respeito, podemos anunciar que – para uma apreensão da ideia adequada de Deus – temos que ultrapassar sua visão antropomórfica (concepção essa imaginária): é preciso, pois, “demonstrar que Deus não é um intelecto nem uma vontade, que não age por finalidade e que Nele liberdade e necessidade são uma só e mesma coisa” [4], bem como demonstrar que Ele mantém uma relação de imanência – e não de transcendência – com a realidade. Definiremos, assim, a liberdade da substância divina como decorrência necessária de sua natureza e não como um livre arbítrio. Assim, explicitar as definições de substância, atributo e modo – articulando-as com os axiomas apresentados por Espinosa –, mostra-se como movimento necessário para a compreensão da ideia adequada de Deus.
Dirá Espinosa: “por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado” [5]. Para nos situarmos melhor, conviria citarmos, também, os dois primeiros axiomas da primeira parte da Ética, a saber: “tudo o que existe, existe ou em si mesmo ou em outra coisa” [6] e “aquilo que não pode ser concebido por meio de outra coisa deve ser concebido por si mesmo” [7]. Espinosa, aqui, faz uma distinção capital no que diz respeito à compreensão da ideia de substância: há, em meio à totalidade de entes, uma única substância que pode ser concebida em si e por si mesma, e que não depende do conceito de nenhuma outra coisa para ser concebida. Por outro lado, há entes que, para serem concebidos, são remetidos a coisas que possuem um maior grau de realidade. Desse modo, o axioma 2 corrobora a definição 3 – porém, não como um suporte para a fundamentação da última uma vez que a existência de uma única substância já é – por si só – objeto de demonstração.
Ainda na delineação desse cenário inicial, o axioma 1 – por sua vez – articula-se fortemente com a definição de causa sui, nos dando base para afirmar, até agora, que existem dois graus de realidade: uma substância que é definida por si mesma (sendo causa de si e da realidade) e um conjunto de coisas que dependem de outras para serem definidas – pela necessidade de pressupostos que entram em suas definições e existências –, tendo a substância como causa primeira. Essa relação de dependência lógico-conceitual e existencial das coisas em relação à substância torna-a imanente às próprias coisas. Ou seja: a substância encontra-se nas coisas as quais subordina, não estabelecendo uma relação de transcendência, ou seja, não se destacando numa esfera superior ou separando-se delas.
Na definição 6, dirá Espinosa: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita” [8]. Aqui, a identificação entre Deus e substância fica clara, bem como a ideia de que Ele – sendo absolutamente infinito – existe de forma ímpar, único enquanto substância, o que por si só contraria a filosofia de René Descartes, que admitia a existência de dois tipos de substâncias (res cogitans e res extensa). Para responder ao problema da pluralidade de coisas no mundo, podemos dizer que um contraponto de Espinosa com o cartesianismo será o de que a substância, sendo causa de tudo, se expressa de diversas formas – dentre elas, nos atributos da extensão e do pensamento.
A substância não produz outras substâncias – o que seria impossível ao seguir o rigor dedutivo –, mas sim modificações na realidade: efeitos que não se separam de sua causa e que se encontram na própria substância absolutamente infinita. A causalidade divina não institui binômios, mas sim n expressões de uma mesma realidade:
Há, assim, duas maneiras de ser e de existir: a da substância e seus atributos (existência em si e por si) e a dos efeitos da substância (existência em outro e por outro). A essa segunda maneira de existir, Espinosa dá o nome de modos da substância. Os modos ou modificações são efeitos necessários produzidos pela potência dos atributos divinos. (CHAUI, 1995, p. 47).
A essa distinção convém observar que,
À substância e seus atributos, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o nome de Natureza Naturante. À totalidade dos modos produzidos pelos atributos, dá o nome de Natureza Naturada. (CHAUI, 1995, p.47).
Natureza Naturante, portanto, corresponde à substância e seus atributos e Natureza Naturada aos modos – modificações – expressos pelos atributos da substância e, por conseguinte, pela própria substância. As definições de atributo e modo, anunciadas nas primeiras linhas da Ética – antes mesmo da definição de Deus –, se fazem necessárias para a apreensão dessa dimensão proposta por Espinosa à realidade substancial. Segundo Espinosa, “por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência” [9] e “por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual também é conhecido” [10].
Deus – portanto, a única substância possível – constitui-se como um Ser de realidade máxima (“quanto mais realidade ou ser uma coisa tem, tanto mais atributos lhe competem” [11]) e composto de infinitos atributos que expressam a Sua essência, porque imanentes à substância. Entretanto, os únicos atributos que competem ao conhecimento do homem são os atributos da extensão e do pensamento, uma vez que o homem é corpo e alma (um conjunto de corpos e ideias), ou seja, composto – através das leis da extensão e do pensamento – de dois modos contidos nos atributos e, consequentemente, contidos na substância:
Desse modo, os corpos definem-se pela figura e pelo movimento, que são modos da extensão; uma figura, um círculo, por exemplo, é uma determinação da extensão; mas a extensão não pode ser concebida a partir de uma coisa diferente dela, deve ser concebida por si. Da mesma forma, uma ideia é um modo, uma determinação do pensamento; mas o pensamento é um atributo, que é concebido por si.
Sendo concebido por si, o atributo distingue-se dos modos e assemelha-se à substância, que é em si e concebida por si; todavia, não se identifica com ela, pois não subsiste em si; atem-se a ela, só nela pode existir. (MOREAU, 1971, p. 33).
Tendo percorrido, em linhas gerais, a distinção feita por Espinosa no que concerne às noções de substância, atributo e modo – base de todo o sistema filosófico da Ética –, trataremos, pois, da questão da liberdade na substância absolutamente infinita, ou seja, de Deus (ou da Natureza). Tal formulação, como já dito, custou a Espinosa o repúdio de sua época.
Como devemos, portanto, entender a liberdade da substância? Espinosa negará, de maneira incontestável, a concepção tradicional de liberdade, que a considera como liberdade da vontade (refúgio da ignorância, segundo o filósofo). Vale lembrar que, para Espinosa, “a vontade não pode ser causa livre, mas unicamente necessária” [12], o que nos remete à afirmação de que o livre arbítrio, na verdade, nada mais é do que uma ilusão que nasce da ignorância das causas que nos determinam a agir. Isso em nível humano: o homem – que é um modo finito da substância e que segue um nexo de causas – tem sua ação sempre limitada por coisas de mesma natureza, ou seja, por outros corpos e ideias (ver mais adiante: Ética, I., def., 2):
Restaria saber se a substância agiria pela liberdade da vontade ou pela necessidade de sua própria natureza – oposição essa, dirá Espinosa, calcada em ideias imaginativas, nos fazendo adquirir um conhecimento inadequado da realidade. Visitemos, portanto, outras definições da primeira parte da Ética:
Diz-se finita em seu gênero aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma natureza. Por exemplo, diz-se que um corpo é finito porque sempre concebemos um outro maior. Da mesma maneira, um pensamento é limitado por outro pensamento. Mas um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo. (ÉTICA, I., def., 2.).
E mais adiante:
Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada. (Ibid., def., 7.).
Partindo dessas definições, podemos concluir que defender a liberdade como liberdade da vontade significa nada mais que empreender algo ilusório, tanto no homem, quando em Deus. O homem, por contraponto ao tema de nosso trabalho, é finito, constituído por modificações do atributo extensão e do atributo pensamento e, por isso, limitado por outras coisas de mesma natureza, a saber, outros corpos e ideias. Quanto menos estiver coagido por outras coisas de mesma natureza, mais poderá exercer ativamente, de forma determinada, sua natureza, sua essência – ou seja, seguindo um nexo de causas que têm a substância como princípio. Esse é o exercício da liberdade nos modos finitos, em linhas gerais: uma autodeterminação; onde liberdade e necessidade não se opõem. No que designa a Deus, a liberdade não deixará, também, de estar atrelada à necessidade – porém, não havendo espaço para coação alguma.
Sendo única – e não-limitada por outra coisa de mesma natureza –, a substância “existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e por si só é determinada a agir”, sendo constituída por uma liberdade necessária e absoluta. Não havendo nada de mesma natureza que ela, uma vez que é absolutamente infinita, uma coação advinda do exterior é impossível. Se afirmássemos o contrário, admitiríamos a existência de duas ou mais substâncias: cairíamos, por isso, em contradição. Observa Chaui:
Deus é causa livre, necessária e imanente de todas as coisas. Livre: porque age apenas segundo a necessidade interna de sua essência. Necessária: porque sua potência é idêntica à sua essência. Imanente: porque não se separa de seus efeitos, mas neles se exprime e eles O exprimem. (CHAUI, 1995, p. 50).
Deus, assim, é livre de acordo com Sua própria essência, jamais produzindo algo que se contraponha a Sua natureza. Todo o possível, foi, é e será produzido pelas determinações da Natureza. O grande erro da tradição judaico-cristã foi considerar Deus somente como um Ser de pensamento (desvalorizando, assim, a extensão), compreendendo a liberdade divina como anterior as próprias leis da realidade. Assim, Deus foi encarado como um espírito soberano, tal como um monarca, que instituiria leis segundo Sua vontade.
Ainda segundo a tradição, Deus (esse Ser sumamente bom) também criaria milagres, atendendo aos pedidos e súplicas dos homens – preconceito esse que, além de ilusório, mascarou (e que ainda mascara) grandes ideais de dominação, uma vez que a poucos é concedido o direito à comunicabilidade com esse Deus pessoal e soberano. Junto ao livre arbítrio, podemos encontrar um outro preconceito humano: o do finalismo (finalismo intencional ou providência divina). Ele será excluído do sistema espinosano – não excluindo, porém, a ideia de uma organização necessária da natureza [13]:
Deus não age por vontade e entendimento, nem orientado por fins, pois vontade e entendimento não são atributos de sua essência, mas modos finitos de um de seus atributos (o Pensamento), e a finalidade é uma projeção imaginária da ação humana em Deus, projeção que, aliás, não corresponde sequer à própria causa das ações humanas, pois os homens também não agem movidos por fins. Deus é uma causa eficiente que age segundo a necessidade interna e espontânea de sua essência, jamais uma causa final e jamais movido por causas finais, pois isso levaria a supor a existência de algo fora Dele que o incitaria a agir, mas nada existe fora de Deus (pois há uma única substância infinita) e nada pode incitá-lo ou coagi-lo a agir, uma vez que Sua ação não é senão a manifestação necessária de Sua essência. (CHAUI, 1995, p. 50).
Espinosa termina a primeira parte da Ética tendo definido a natureza divina e demonstrado suas propriedades, geometricamente. Porém, seus esforços também se concentraram em enumerar uma série de preconceitos que minam as visões humanas, uma vez que elas se baseiam em ideias imaginativas e mal fundadas. Para Espinosa, o conhecimento adequado de Deus é um passo capital para a compreensão dos pontos que se seguirão na Ética, como a natureza da mente humana e dos afetos. Tal tentativa, portanto, apresenta-se como uma possibilidade de superação de nossos preconceitos primeiros e empreende o conhecimento adequado de um universo totalmente determinado e inteligível, que é o nosso.
BIBLIOGRAFIA:
CHAUI, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos).
MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
[1] Ética, I, def., 6.
[2] Ordem de exposição que parte da causa em direção a seus efeitos. A ordem de exposição cartesiana (analítica) parte dos efeitos em direção à causa.
[3] Ética, I, def., 1.
[4] CHAUI, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. p. 46
[5] Ética, I, def., 3.
[6] Ibid., ax., 1.
[7] Ibid., ax., 2.
[8] Ibid., def., 6.
[9] Ibid., def., 4.
[10] Ibid., def., 5.
[11] Ibid., p., 9.
[12] Ibid., p., 32.
[13] MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 38.
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