domingo, 14 de junho de 2009

A Cidade de Deus


SANTO AGOSTINHO E A TEOLOGIA DA HISTÓRIA TELEOLÓGICA NA “CIDADE DE DEUS”

“Credo ut intelligam”

(“Creio para que possa entender”)

Sem a fé a razão é incapaz de promover a salvação do homem e de trazer-lhe felicidade. A razão funciona como auxiliar da fé, permitindo esclarecer, tornar inteligível, aquilo que a fé revela de forma intuitiva. A grande questão discutida pelos intelectuais da Idade Média é a relação entre razão e fé, entre filosofia e teologia.

Aurélio Agostinho, principal nome da patrística, recorre à filosofia platônica, por intermédio do neoplatonismo de Plotino, para realizar uma síntese com a doutrina cristã, adaptando o pensamento pagão. Agostinho retoma a dicotomia platônica “mundo sensível e mundo das idéias”, mas substitui este último pelas idéias divinas. Tal dicotomia desdobra-se na Cidade terrestre, gerada pelo amor a si mesmo e pelo desprezo por Deus, e na Cidade de Deus, gerada pelo amor por Deus até o desprezo por si mesmo. A história da humanidade, então, é interpretada como conflito entre a Cidade de Deus, inspirada nos valores cristãos, e a Cidade terrena ou humana, baseada nos interesses mundanos.

Essa concepção de Agostinho mostra a coerência dos acontecimentos, que seguem um movimento determinado e se constituem segundo certas grandes linhas de força. Os acontecimentos do passado (e do presente) nos permitem indicar uma possibilidade de futuro ou, num sentido mais amplo, um sentido; e não uma previsão que submetemos a cálculos precisos. Ao final do processo histórico, porém, a Cidade de Deus deveria triunfar. Aí entram os platônicos, interlocutores privilegiados, pois reconheceram que a alma humana só pode encontrar felicidade na participação da luz de Deus.

Os platônicos superaram o universo dos corpos e dos espíritos na busca de Deus, entretanto eles mesmos não souberam como deixar o politeísmo para trás. O mundo e tudo o que nele enxergamos devem seu ser ao Ser absoluto, supremo. A perfeição para o homem, seu telos, é viver segundo a virtude, o que não é possível sem o conhecimento e a imitação de Deus, sendo a condição mesma da felicidade. Podemos afirmar a existência de algo “imperfeito”; porém nós exigimos a existência do seu contrário. O conhecimento verdadeiro exige uma estabilidade, que é contrária ao eterno devir: a busca por leis imutáveis, dentre elas, a mais imutável de todas, que é Deus.

Para Platão o Ser nos é mostrado através de imagens e reflexos no mundo sensível. Para Agostinho, Deus (o Ser) não pode ser olhado diretamente, mas, diferente de Platão, não recebemos imagens aparentes, e sim sua luz. A imagem do sol é exaltada, é aquele que ilumina, que determina a vida; assim como Deus, que é fonte inesgotável e absoluta de saber. A existência de Deus é assim provada a priori, irrevogavelmente, por sua existência no espírito humano, e sua iluminação da inteligência humana. Deus é o total das totalidades, o real das realidades, a verdade das verdades, a mais perfeita das perfeições, isto é, uma essência absoluta do Universo. “Essência” é entendida como um conceito unificador. Caminhamos, então, ao conceito de Uno e faremos menção a Plotino, filósofo mais célebre do conjunto do neoplatonismo.

O Uno é o Todo, a fonte do universo, a unidade do universo, seu ser último e primeiro, sendo superior mesmo ao bem. Plotino defende que o caminho, para se chegar a esse princípio abstrato, não é a dialética de Platão, mas sim o êxtase religioso. O Uno é aquilo em virtude do que há pensamento. Há um misticismo em Plotino, e ele saberá, por essa via, fazer uma crítica ao pensamento cristão e gnóstico de sua época. Entretanto, sua doutrina espiritualista calcada no platonismo influenciará o pensamento cristão medieval e sua doutrina do Uno servirá de apoio para a questão da Santíssima Trindade; o Deus que se manifesta em três personalidades distintas, mas que são, na verdade, o mesmo Deus; “eis o mistério da fé”. Algo que já ultrapassa, principalmente para Agostinho, o campo da razão: acreditar em tal mistério encontra-se no campo da fé. É uma verdade simples, mas que ultrapassa o campo do dizível e do explicável. Pai, Filho e Espírito Santo: O Pai é essência divina em sua insondável profundidade; o Filho é o verbo, a razão ou a verdade, através da qual Deus se manifesta; o Espírito Santo é o amor, mediante o qual Deus dá nascimento a todos os seres.

Deus é a plenitude do ser. A partir disso Agostinho constrói a doutrina do bem e do mal e, inevitavelmente, tocará na questão do livre-arbítrio e do pecado. Em primeiro lugar, vale ressaltar que, para Santo Agostinho, tudo aquilo que é é necessariamente bom, pois a idéia de bem está implicada na idéia de ser. Deus não poderá ser a causa do mal nem mesmo a matéria por ele criada. O mal estaria na esfera contrária de Deus: o não-ser. O mal não é uma substância e sim a ausência do bem. Agostinho herda, assim, mais características de Plotino e vai de encontro às teses maniqueístas: não há uma luta entre duas entidades (o bem contra o mal); há o bem (Deus). O mal é privação de Deus.

O que é pecar? O que é se afastar de Deus? Ao criar o homem, Deus lhe prescreveu algumas leis, mas deixou-o senhor para prescrever a sua, no sentido de que a lei divina não exerce nenhum constrangimento sobre a vontade do homem. O homem seria, à semelhança de Deus, memória, essência (Pai), verbo, razão, inteligência (Filho), amor e vontade (Espírito Santo). Esta duas últimas seriam responsáveis pela criação do mundo no que diz respeito a Deus e às criações humanas no que diz respeito aos homens. A vontade intervém em todos os atos do espírito e constituí o centro da personalidade humana. Criadora e livre, ela nos dá a possibilidade de nos afastarmos de Deus (do Ser) e de caminharmos rumo ao não-ser, o mal. Logo o pecado se dá pelo livre-arbítrio. Pecado é a desobediência ou transgressão voluntária à lei de Deus. Se um homem sucumbe isso se dá pela sua própria escolha. O culpado não é Deus.

O homem, porém, poderia se salvar através da graça divina e, assim, a Cidade de Deus triunfará. A grande imagem correspondente ao telos agostiniano seria a dos homens vivendo na Cidade Celeste.

Bibliografia:

-GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins fontes, 1995.

- Dicionário dos Filósofos/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

- GILSON, Étienne. O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

- Dicionário Básico de Filosofia/ Hilton Japiassú, Danilo Marcondes- 3ª ed. rev. e ampl.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

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