domingo, 21 de junho de 2009

A Dúvida Metódica


A DÚVIDA METÓDICA


Descartes, no prólogo de suas Meditações Metafísicas, antecede o objetivo de sua dúvida, chave mestra de seu método, tomando-a como ponto de partida para a construção de sua ordem das razões. Tal dúvida, com características que elucidaremos, possuí uma presença marcante na primeira das meditações, pois é capital na atitude suspensiva adotada, à maneira dos céticos, mas que, justamente, será a bandeira contra o ceticismo e da busca de algo de firme nas ciências, ou seja, de um critério de verdade que a fundamente, que seja o início de todo seu raciocínio. Para tanto, é preciso de algo certo e não de uma simples probabilidade.

O filósofo, utilizando a força da dúvida dos céticos, a leva, porém, a um maior grau de questionamento: questiona a própria existência dos corpos, inclusive o dele, e também do próprio valor da razão. A dúvida metódica, de modo geral, desempenha um papel libertador:

[...] Ora, se bem que a utilidade de uma dúvida tão geral não se revele desde o início, ela é todavia nisso muito grande, porque nos liberta de toda sorte de prejuízos e nos prepara um caminho muito fácil para acostumar nosso espírito a desligar-se dos sentidos, e, enfim, daquilo que torna impossível que possamos ter qualquer dúvida quanto ao que descobriremos, depois, ser verdadeiro. (DESCARTES, 1979, p. 79)

Ela diferencia-se da dúvida cética pela posse de um caráter ativo e por constituir um ponto de partida para a busca da verdade: representa o abalo de todas as nossas certezas, mas, ao contrário da mera “flutuação” cética, procura a superação da própria dúvida e, vencendo o abalo inicial, deseja a constituição de uma base sólida, clara e distinta, que esteja salva de qualquer questionamento. Podemos defini-la como livre, radical, universal e provisória.

A dúvida metódica é livre. A liberdade entrelaça-se com a vontade de duvidar. Sem que se queira duvidar, não podemos ter dúvida. Sendo assim, a dúvida é exercida livremente por uma decisão da vontade do sujeito livre, não engendrada por experiência: a ideia de liberdade como poder de escolha é exaltada. Porém, antes de qualquer escolha, é preciso ter razões para querer duvidar. E encontramos tais razões não, necessariamente, em cada ideia particular, e sim em suas raízes.

A dúvida metódica é radical em dois sentidos: primeiro porque ataca as raízes do conhecimento- a percepção sensível e a razão- e em segundo porque a estende e radicaliza, no sentido de considerar sempre como falso tudo aquilo que apresente uma mínima dúvida ou desconfiança. Tal atitude em relação aos sentidos é adotada primeiramente pelo fato de existirem razões muito fortes para isso: os sentidos nos enganam, as percepções do sono são indistinguíveis das percepções de vigília, não há um critério sólido, por enquanto, que nos permita afirmar que o mundo objetivo ,tal como o conhecemos, seja verdadeiro ou que seja uma representação arbitrária que nada tem a ver com o real.

As verdades matemáticas também são colocadas em dúvida, com o argumento do Deus enganador e do Gênio Maligno: a dúvida se contrapõe radicalmente às nossas certezas. Nós chegaremos a nos persuadir de que tudo pode ser enganoso. Mas caso escapemos vitoriosos, escaparemos invencíveis. Quanto mais poderoso o inimigo, mais certeza quando a batalha estiver terminada. Só daremos adesão a uma opinião no momento em que ela se apresentar como indubitável.

A dúvida hiperbólica nos segura, assim, no impulso de creditar nossos preconceitos, pois estes nos inclinam para a aceitação de algo, sem questionamento. Com seu auxílio, formulamos dúvidas excessivas e começamos a questionar todas as nossas antigas opiniões (mas que tentam se fazer presentes, pois estão muito impregnadas em nós). A dúvida metódica é também universal:

Razões às quais nada tenho a responder, mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente consideradas: de sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências. (DESCARTES, 1979, p. 88)

Por fim, a dúvida metódica é provisória na medida em que representa um momento detonador de questões, não tendo por objetivo a suspensão do juízo em si mesmo. Descartes não deseja ficar negando teorias sem trazer algo novo, mas sim em sair da batalha refutando um ardiloso inimigo, pois caso a refutação não seja forte o bastante, a dúvida permanecerá e as bases correrão perigo.

Referências Bibliográficas:

DESCARTES, René. Meditações; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. – 2.ed.- São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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