terça-feira, 17 de junho de 2008

O Sofista e a Retórica

O Sofista e a Retórica
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que não são” (Protágoras)

“Ora, para nós, é Deus que deverá ser a medida de todas as coisas, muito mais do que o homem, conforme se afirma por aí” (Platão, As leis)


Sophistés ou Sofista. Inicialmente significa todo aquele que é excelente numa arte ou técnica, que pratica o sophízein para tornar-se hábil, sensato e prudente. Em Atenas, a partir da segunda metade do século V a.C., significa mestre de filosofia e eloqüência. Com Platão, passa a designar pejorativamente o sofista. O verbo sophízomai- tem como um dos significados “tornar-se astucioso e engenhoso para enganar com palavras”- é capital para entender o conceito de sofista.
Conhecemos os sofistas, assim como conhecemos os filósofos pré-socráticos: pouco, pois o que se sabe baseou-se nos fragmentos deixados pelos dois principais sofistas (Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini, com exceção de Isócrates- que teve sua obra preservada) e pelos relatos de seus inimigos, sobretudo os filósofos, e por isso são descritos sob um olhar negativo, como dito anteriormente: o sofista seria alguém que usa de raciocínio capcioso, de má-fé, com a intenção de enganar.
Eles viveram no século de Péricles (V a.C.), no auge da democracia ateniense, em meio a uma intensa época cultural e artística da pólis, e estavam ligados ao processo educacional de indivíduos, através da venda de conhecimento (algo condenável para seus contemporâneos, como Sócrates e Platão), para o exercício do discurso persuasivo na ágora, tendo como fim o convencimento geral, sem comprometimento com verdade alguma, pois defendiam o Relativismo e a existência de inúmeras verdades.
Os sofistas foram os primeiros professores na história da educação (e enriqueceram com isso), ensinando a arte de argumentar e persuadir. Isso representava um perigo, pois em pleno regime democrático, onde todos os cidadãos possuem direito de reclamar na ágora e ser um orador eficaz era a chave do poder, estava aberta uma oportunidade de mais pessoas aperfeiçoarem essa característica própria do homem, mediante pagamento, mas que de uma certa forma ía contra a idéia de que o conhecimento deveria ser dado unicamente a para algumas pessoas, por exemplo no caso de Sócrates, que escolhia seus discípulos mediante ao seu daímon- fazendo com que escolhesse corretamente os homens capazes de chegar à virtude, através de uma inspiração.
“Como chegam esses homens a incutir na juventude que somente eles, e a propósito de todos os assuntos, são mais sábios que todo mundo?”1, pergunta o Estrangeiro a Teeteto, evidenciando, assim, uma característica fundamental do sofista: este domina a arte de imitar e faz com que outros acreditem ser ele um sábio- o conhecedor da verdade- mesmo achando impossível se chegar a uma verdade e, no caso de se chegar, de não poder pronunciá-la. Górgias dizia que o “o ser” não pode ser conhecido e se fosse cognoscível, não seria comunicável. Um caminho diferente dos filósofos, que têm a verdade como fim e fazem da filosofia essa busca. Para o filósofo, que reconhece que nada sabe em um primeiro momento, aquele que não sabe e acredita saber é o maior dos ignorantes. Para os filósofos, só é possível conhecer a realidade através da desilusão e, segundo relatos, os sofistas são mestres na arte da ilusão.
“Os professores da eloqüência” dizem que não há um padrão independente de verdade, negando as propriedades essenciais que os objetos possuem de maneira absoluta (essência) e, já que, apóiam-se na idéia que o não-ser é indizível, logo, todo discurso é verídico. E assim, não existe discurso falso: basta ser um proposição que assim será verdadeira. Para Protágoras, se dois homens enunciam discursos contrários, ambos poderão estar com a verdade, já para Aristóteles um estará certo e o outro estará errado (base para a fundamentação do princípio da não-contradição). Aristóteles vai além: diz que todas essas doutrinas (dos sofistas) acabam por destruírem a si mesmas.
O que se destaca no diálogo “Sofista” de Platão é o enorme desejo de definir e capturar esse ser escorregadio que parece que nos escapa, que é o sofista. Entretanto, esse aparente vilão que se apresenta pode ser visto de outra maneira? A corrente de pensamento dos sofistas2 se apresenta um tanto mais “charmosa” no que se diz respeito ao caráter absolutizante, por exemplo, do mundo das idéias, que é transcendente.
Para seus contemporâneos oligarcas, os sofistas ensinavam o que não se ensina, pois é algo dado pela natureza: ser cidadão. Os seus contemporâneos socráticos diziam que eles operavam com opiniões (doxa) contrárias, ensinando a argumentar persuasivamente tanto em favor de uma como de outra, deixando de lado o verdadeiro conhecimento (episteme) que é o mesmo para todos os homens. A meta de Platão era tirar essa techné das mãos dos sofistas e mostrar que, aplicada propriamente e baseada no conhecimento da verdade, era coextensiva com a filosofia. Os “refutadores” fazem opção pelo nómos contra a phýsis: as convenções estão em todos os lugares, não existem valores, idéias e leis absolutas e universais. Para um sofista ou retórico, verdade e conhecimento eram ilusão e pelo que parece, interessa-se inteiramente pelos meios, e não pelos fins, e seu ensino tem diferentes efeitos nos alunos de acordo com o caráter. A retórica em grandes públicos3 funciona de modo que os ouvintes não são escolhidos, não se conhecem entre si, e a palavra é dirigida a profanos que não discutem, apenas escutam. Segundo Giorgio Colli em “O Nascimento da Filosofia” a retórica nasceu com a vulgarização da primitiva linguagem dialética.
Um suposto entrelaçamento entre o “ser” e o “não-ser” será evidenciado pelo Estrangeiro e Teeteto em o “Sofista” de Platão, mostrando que é possível um discurso falso, tentando derrubar a tese sofista de que é impossível falar falsamente, onde tudo que parece e tudo que se crê seriam verdadeiros.
Nas palavras do Estrangeiro: “Assim, esta arte de contradição que, pela parte irônica de uma arte fundada apenas sobre a opinião, faz parte da mimética e, pelo gênero que produz os simulacros, se prende à arte de criar imagens; esta porção, não divina mas humana, da arte de produção que, possuindo o discurso por domínio próprio, através dele produz suas ilusões, eis aquilo de que podemos dizer 'que é a raça e o sangue' do autêntico sofista, afirmando, ao que parece, a pura verdade”.4

Bibliografia:

Maria Lúcia de Arruda Aranha, Maria Helena Pires Martins. “Teoria do Conhecimento (capítulo 10)”, in Filosofando: introdução à filosofia - 3.ed. revista (São Paulo: Moderna, 2003): pp. 120-121.

COLLI, Giorgio. O Nascimento da Filosofia; [trad. Federico Carotti]. Campinas, Ed. Unicamp, 1988: p. 85.

PLATÃO. “Sofista”. Os Pensadores [trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa]. 1ª ed. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972.

GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas [trad. João Rezende Costa].- São Paulo: Paulus, 1995. pp. 33-38, 169-174.

Notas:
1 PLATÃO. Sofista. Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1792. p.158 d.
2Apesar de agrupá-los numa corrente de pensamento e enquadrá-los todos como “sofistas”, eles não se identificavam a um mestre e não se prendiam a uma determinada escola, pois eram individualistas.
3Os sofistas se distinguiam dos oradores populares, segundo “Sofista” de Platão: “atuam em reuniões particulares, dividindo seu discurso em argumentos breves, obrigando seu interlocutor a se contradizer”.
4 PLATÃO. Sofista. Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1792. p. 203 d.

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