sábado, 6 de dezembro de 2008

Filosofia da Ciência (continuação 2)

(Gaston Bachelard, de Asger Jorn, 1960)

(Idealismo Discursivo- continuação 2)

"Eu estava enganado em relação às coisas. Logo não sou aquele que julgava ser"


Bachelard defende o dinâmico em relação ao estático. O conhecimento é sempre uma tentativa de dizer o que é, mas não conseguimos fazer isso completamente. "O idealismo imediato falha ao apresentar um sujeito originalmente costituído e a idéia como um absoluto que se pode destacar pela análise". A idéia é sempre solidária de correlações, como dito anteriormente. A partir de um conhecimento imediato e primeiro, nós podemos constituir o conhecimento, mas nunca poderemos falar totalmente o que é esse real. Não é o real que será conhecido e sim a realização. O objeto é realizado, ou seja, ele passa por um processo de objetivação. E é esse processo que, afinal, nós conhecemos. A idéia, para Bachelard, corresponde a uma modificação espiritual, uma transformação do ser que procede por eliminação: "Em toda consquista há um sacrifício", diz.
Assim, a grande pergunta a René Descartes é lançada: "Será possível meditar no abstrato sobre o sentido metafísico da retificação? Será possível destacar uma forma metafísica da deformação espiritual, da retificação em si, afastando toda referência ao objeto retificado?" (Lembramos, então, que Descartes diz que nós conhecemos a substância pensante independentemente do objeto exterior ao sujeito. Essa concepção, para Bachelard, é o obstáculo a ser superado). Como pode Descartes basear todo o conhecimento num princípio que se dá num instante? O erro de Descartes foi que ele quis perpetuar esse instante do cogito.
"O sujeito entendido como fator de retificação, quando põe em dúvida a vontade anterior e vê a irrealidade da realidade primeira, se reconhece como contemporâneo do segundo tempo do ser, um acréscimo de ser": através de retificações, o sujeito constrói a si próprio e também o objeto. O sujeito só toma consciência de si (só se vê como "estrutura") no processo de objetivação. O idealismo de Bachelard começa com lentidão e dor. Ficar na horizontalidade é continuar no mesmo, é não ter um momento de criação; busquemos, então, a verticalidade! "O sujeito toma assim consciência de sua força de recolhimento, de sua verdadeira solidão, de sua retração possível, de sua independência para com o dado e, consequentemente, da gratuidade do dado. Tudo o que primitivamente era dado talvez precise ser retomado, mas, pelo menos, agora, entre o dado e o recebido, há um intervalo, um tempo de reflexão e a orgulhosa atitude de recusa". O cogito cartesiano só se dá porque Descartes se retificou e sempre que enunciamos o célebre "Penso, logo existo", ele é acolhido como verdadeiro. Só que ele se dá no instante. Será que não poderíamos esclarecer o cogito na perda do próprio cogito, como proposto por Bachelard? Não será melhor refazer a retificação em nós mesmos para sentirmos o verdadeiro sentido de uma idéia?
A idéia simples não existe. Toda idéia primeira já é complexa, pois é razão e experiência (introduzimos coordenadas experimentais), da mesma forma que o processo dinâmico da objetivação oscila entre sujeito e objeto, tomando toda a alma. O apodíctico tem que se instaurar a partir do assertórico: ele não pode se impor; ele tem que partir também de experiências e retificações. A própria razão se nega, a ciência sofre abalos nos quais a história de objetividade de uma idéia ultrapassará a história de objetividade de outra idéia, e assim por diante. Se a idéia possuí uma historicidade, ela já não é simples. Para Descartes, só há ciência quando partimos de idéias simples para depois deduzirmos o resto.
"O que nos enriquece quando retificamos nossas primeiras ilusões, quando deixamos o reino das aparências, talvez seja apenas um domínio deserto e indeterminado. Mas a servidão empírica foi abolida. O espírito experimenta sua independência em relação à experiência. Quando tomo consciência de meu erro objetivo, tomo consciência de minha liberdade de orientação. (...) Eu estava enganado em relação às coisas. Logo não sou aquele que julgava ser. (...) Mas, uma vez corrigido, esse erro objetivo fornece o plano de uma construção íntima que interessa ao próprio sujeito. Ao viver a retificação objetiva do conhecimento, o sujeito tem a revelação de sua própria força e da possibilidade de um devir espiritual". Não apreendemos isso tudo numa intuição (impulsiva) como disse Descartes: o conhecimento é reflexivo, ele vai por etapas; "pensa destruindo"; refletir é pegar o conhecimento anterior e retificar, juntando isso tudo à lembrança das estagnações passadas. Um erro é, assim, reconhecido; e então o cogito se distingue. Ele não se confirma por si, funcionando no vazio.
"A meditação metafísica deve começar com paciência, com longa disciplina, a esclarecer o ser na perda do ser, numa espécie de cogito negativo, num pensamento que se abstrai, num pensamento que se recusa, que insiste em diminuir".

Nenhum comentário: