terça-feira, 19 de julho de 2011

FÉDON: A IMORTALIDADE DA ALMA


FÉDON: A IMORTALIDADE DA ALMA

O diálogo Fédon, de Platão, é fundamental para a reflexão filosófica e metafísica do Ocidente. Nele, Sócrates – condenado pela democracia ateniense e prestes a beber a cicuta – nos demonstra a imortalidade da alma. Tal demonstração, por sua vez, é feita diante de alguns de seus discípulos que viam na eminente morte de Sócrates um motivo para grande desespero, pois perderiam seu “grande pai” nos caminhos do pensamento. Entretanto, Sócrates – nas palavras de Fédon em seu relato para Equécrates – surpreendeu: respondeu às questões e aos temores de seus discípulos com humor, bondade e ar interessado, selando – de certa forma – a “imagem” clássica do que significa, verdadeiramente, ser filósofo.

O ponto que o presente trabalho busca desenvolver é a resposta dada por Sócrates a Símias e a Cebes, uma vez que ambos aceitaram a teoria da reminiscência – não aceitando, porém, a teoria da imortalidade da alma – garantia dada por Sócrates como verdade após a morte do corpo. Assim, a teoria da imortalidade da alma está assentada em quatro pilares: a teoria dos contrários, a reminiscência, a simplicidade e a incompatibilidade dos opostos. O que faremos, é uma breve recapitulação da teoria da reminiscência e dos outros argumentos para, então, entrarmos nesse segundo momento no qual Sócrates argumenta a favor de sua teoria, fazendo com que Símias e Cebes enxerguem sua tese não com os olhos do corpo, mas sim com os olhos da alma:

Sócrates – E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se na investigação pedimos auxílio? Quero dizer com isso, mais ou menos o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relação a estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir incessantemente, e que não vemos nem ouvimos com clareza? E se dentre as sensações corporais estas não possuem exatidão e são incertas, segue-se que não podemos esperar coisa melhor das outras que, segundo penso, são inferiores àquelas. Não é também este o teu modo de ver? (PLATÃO, 1972, p. 72).

A sucessão dos contrários representa um momento crucial, e inicial, para o desenvolvimento de toda a argumentação socrático-platônica. Notamos, aqui, a herança do heraclitismo, que admite que – na realidade do devir – as coisas surgem de seus contrários. Essa seria a lei geral da natureza que possibilitaria o movimento e a dinâmica da realidade: da mesma forma que prazer e dor andam juntos – se geram um do outro – o pequeno e o grande se mantêm em relação, de modo que pensamos nos objetos grandes em contraste com os objetos pequenos e vice-versa. O que Sócrates conclui, diante da realidade que se transforma incessantemente, é que há uma sucessão infinita de contrários, que impedem a imobilidade dessa realidade: o decomposto torna-se composto, e o composto torna-se decomposto, assim como da vida sucede-se a morte e da morte sucede-se a vida. A questão, porém, é essa, segundo Sócrates (Platão, 1972, p. 79): “se dos mortos nascem os vivos, que podemos admitir senão que nossas almas devem mesmo estar lá [no Hades]?”. Mais adiante, Sócrates – ao insistir na geração dos contrários – admite que sem essa eterna compensação recíproca das gerações faltaria algo à natureza, a constância pela qual ela seria tributária:

- Cabe-te agora a vez de dizer outro tanto a respeito da vida e da morte. Não dirás, de início, que “viver” tem por contrário “estar morto”?

-É o que eu diria.

-E, em seguida, que esses estados se engendram mutuamente?

-Diria.

-Que é, por conseguinte, o que provém do que está vivo?

-O que está morto.

-E do que está morto, que é que provém?

-Impossível – disse Cebes – não admitir que é o que está vivo.

-É, pois, de coisas mortas que provêm, Cebes, as que têm vida, e, com elas, os seres vivos?

-É claro.

-Quer dizer, então, que nossas almas existem no Hades.

-Parece mui verossímil.

(Ibid., p.80)

E:

-Das duas gerações, enfim, que aqui temos, não há pelo menos uma que não nos deixe dúvida sobre sua realidade? Por que o termo “morrer” penso, está fora de dúvida! Não está?

-Sim, absolutamente certo.

-Que faremos, então? Não o compensaremos pela geração contrária? Porque, se não fosse assim, a Natureza seria coxa! Ou, pelo contrário, será preciso supor uma geração contrária ao “morrer”?

-Isso é, segundo penso, absolutamente necessário.

-E qual é essa geração?

-É “reviver”.

-Por conseguinte – continuou Sócrates – uma vez que “reviver” existe, não se poderá dizer que o que constitui a geração dos mortos para os vivos é precisamente “reviver”?

-Evidentemente.

(Ibid., pp 80-81)

Dessa maneira, Sócrates admite que as almas, dos mortos, existem em algum lugar: invisíveis aos olhos do corpo, mas visíveis aos olhos da alma. Daí, partindo dessa existência invisível, elas poderiam retornar para o nosso mundo no momento da geração da vida. Abre-se aqui o caminho, também, para a discussão da teoria da reminiscência, uma vez que ela se articula com a existência das almas antes das mesmas incorporarem-se e constituírem “novas” vidas. Resgatando teses defendidas em outros diálogos, como o Fédro, Sócrates relembrará e desenvolverá a questão que gira em torno da reminiscência: a de que “todo conhecimento é um reconhecimento”.

Partindo da ideia de que corpo e alma são coisas que se opõem, mas que coexistem no homem, Sócrates partirá para a análise de como podemos estabelecer relações entre as coisas sensíveis, mesmo que elas – pelo fato de serem sensíveis – não nos possam oferecer nenhuma verdade em si mesmas (sendo apenas cópias de algo verdadeiro e imutável). A análise de tal problema partirá das coisas sensíveis para a apreensão de uma realidade que é mais verdadeira, a saber, o mundo das ideias (Topos Uranos). Longe, porém, de se utilizar de uma imagem como a da Alegoria da Caverna, Platão nos deterá no modo como apreendemos as semelhanças e as diferenças entre os objetos sensíveis, no qual trazemos a visão obscura da essência (que será relembrada no contato com o objeto): ela, aqui, é o alicerce que nos permite fazer essas apreensões.

A apreensão, por exemplo, de objetos de tamanhos diferentes – imagem utilizada pela personagem Sócrates – nos levanta a seguinte questão: se, acerca de objetos sensíveis, dizemos que um deles é maior em relação a um e menor em relação a outro, poderíamos afirmar que esse objeto possui alguma das duas qualidades em si mesmo? De tal questão, Sócrates afirma a impossibilidade de formar as ideias, de Grande e Pequeno, a partir da experiência sensível de objetos que se apresentam como grandes ou pequenos apenas em relação: seria preciso que nossa alma já tivesse contemplado a essência do Grande e do Pequeno. Assim, é estabelecida uma distinção entre a ideia e as coisas que lhe são semelhantes – a primeira sendo sempre igual a si mesma e imóvel só pode ser apreendida pela alma e as segundas se vinculam à primeira pelo que chamaremos de participação.

Os objetos sensíveis que participam das ideias nunca as esgotam: a alma compreende que tais objetos desejam esgotá-las, mas nunca completam tal projeto. Sendo sempre iguais a si mesmas, as ideias são simples, imóveis e só podem ser apreendidas pelo intelecto, permanecendo sempre na identidade: o Grande em si, o Pequeno em si, o Belo em si, etc – não as percebemos através de nossos sentidos, mas eles nos despertam para o reconhecimento de uma contemplação anterior à própria vida:

-Assim, pois, antes de começar a ver, a ouvir, a sentir de qualquer modo que seja, é preciso que tenhamos adquirido o conhecimento do Igual em si, para que nos seja possível comparar com essa realidade as coisas iguais que as sensações nos mostram, percebendo que há em todas elas o desejo de serem tal qual é essa realidade, e que no entanto lhe são inferiores!

-Necessária consequência, Sócrates, do que já dissemos.

(Ibid., pp. 84-85)

E mais adiante:

-(...) é uma necessidade lógica que tenhamos nascido com esse saber eterno, conservando-o sempre no curso de nossa vida.

(Ibid., p.85)

A essa simplicidade e essencialidade – que são invisíveis aos olhos da carne, mas apreensíveis aos olhos do intelecto (mesmo que de maneira obscura – uma vez que partimos de objetos sensíveis que nos despertam para uma realidade superior) – Sócrates identificará a alma. E ela, por sua vez, se identificaria com a ideia, uma vez que ambas são indestrutíveis. Ou mais: uma vez que é por meio da alma que conhecemos a ideia, poderíamos deduzir que elas compartilham uma mesma natureza ou pelo menos algo em comum.

Chegado nesse ponto – e diante das demonstrações de Sócrates –, Símias e Cebes se encontram convencidos acerca da teoria da reminiscência. Os discípulos de Sócrates, porém, não se convenceram da afirmação de que a alma, mesmo após a decomposição do corpo, se mantenha una, indestrutível e que não se desgaste ao longo de seus renascimentos. As objeções de Símias e Cebes, por isso, visam atacar a última das grandes teorias defendidas por Sócrates: Símias exalta a impossibilidade de a alma continuar existindo após a morte, uma vez que – comparativamente – a harmonia seja produzida pela lira e não o contrário. Cebes, por sua vez, levanta a questão de que, mesmo que a alma preexista ao corpo e que se dirija ao Hades após a morte, isso não implica que a alma não sofra uma espécie de desgaste e que, ao fim – em seu desgaste máximo –, deixe de existir.

Sócrates, jovial e alegre com as últimas e mais ferozes objeções, responderá aos questionamentos de seus discípulos, colocando em jogo uma das maiores discussões da metafísica e da filosofia, uma vez que demonstrará – com a força da razão e dos argumentos – a imortalidade da alma. Para Símias – que apresentou, das duas, a mais fraca das objeções – Sócrates fará uso do seguinte argumento: da lira segue-se o som, e deste constitui-se a harmonia: isso é algo certo, mas não podemos jamais deduzir que com a alma se passe a mesma coisa. Se a harmonia e o som seguem-se da lira; e se a lira sofre algum dano em suas cordas – perturbando o som e a harmonia – não podemos se utilizar desse fato e compará-lo ao estatuto da alma:

-Pergunto se, quando os elementos estão de acordo, se a harmonia também não existe mais ou menos? E quando mais fracos e menos extensos, se a harmonia também não é mais fraca e menos extensa?

-Claro!

-E com a alma se passará o mesmo? É o fato de uma alma ter, no menor de seus elementos, em grau mais elevado do que outra, mais extensão e mais grandeza ou menos extensão e mais fraqueza, que precisamente constitui o que ela é, a saber, uma alma?

(Ibid., p.105)

Assim, Sócrates – demarcando a essencialidade da alma –, combate o argumento de Símias, uma vez que nossa parte divina constitui-se numa ordem diferente, possuindo uma realidade que lhe é própria: a alma não segue, necessariamente, as paixões do corpo – muitas vezes, e na maioria delas, ela as contraria, assim como afirmará o filósofo que está prestes a beber a cicuta. A alma não pode ser encarada como “a harmonia do corpo”, na medida em que ela não nasce dele, mas lhe é anterior – como foi demonstrado na teoria da reminiscência.

Em sua resposta a Cebes, Sócrates partirá para a análise das ideias – uma vez que elas se identificam com a natureza da alma. Ao nos lembrar que o Belo em si, o Grande em si e o Bom em si existem, Sócrates visa demonstrar que a alma é imortal: o que o fará mencionar, consequentemente, a teoria da participação. Os objetos que participam das ideias obedecem à dinâmica da corrupção e geração, da sucessão dos contrários, mas a ideia – que é idêntica a si mesma – não se submete a uma geração a partir de seu contrário.

Sócrates se utiliza do seguinte exemplo: se um indivíduo é grande em relação a um e pequeno em relação a outro é porque, em relação, se sobrepõe à pequenez de um e se subjuga à grandeza do outro, não existindo simultaneamente no mesmo indivíduo na mesma relação. Ou seja, as qualidades se sucedem, mas o mesmo não acontece com “os próprios contrários que estão dentro de uma coisa e lhe dão nome”:

-Digo isto, porque desejo que tenhas a mesma opinião que eu. Pois, quanto a mim, parece-me claro isto: a grandeza em si jamais consente em ser simultaneamente grande e pequena. Da mesma forma procede a grandeza, nunca admitindo a pequenez nem desejando ser ultrapassada, mas optando por uma destas alternativas: ou se retira e foge quando seu contrário, a pequenez, se aproxima – ou, então, cessa de existir quando aquela avança. O que admite e aceita a pequenez jamais deseja ser outra coisa senão o que é. Eu, por exemplo, havendo admitido e aceitado a pequenez, continuo a ser o que sou, pequeno; mas a grandeza em si não suportou ser grande a ao mesmo tempo pequena; e, da mesma forma, a nossa pequenez jamais deseja tornar-se ou ser grande; aliás, nenhuma outra coisa deseja, enquanto existe, tornar-se ou ser o seu contrário, mas se retira ou se destroi quando isso acontece.

(Ibid., pp.115-116)

Da mesma forma, acontece com o fogo: não se confundindo com o calor, mas participando da ideia desse último, ele jamais aceita a ideia de frio. Entretanto, quando o frio se aproxima, o fogo (Ibid., p.117) “retirar-se-á ou deixará de existir, mas nunca se resolverá a aceitar o frio e continuar ao mesmo tempo a ser o que era, fogo e frio”. Com a ideia de três também se sucede a mesma coisa: além de conter a sua própria ideia, o número três contém a ideia de ímpar – assim, jamais poderá se aproximar da ideia de par. Podemos, também – inversamente – dizer que a ideia de par jamais se aproximará do número três, uma vez que o três participa da ideia de ímpar. Completa Sócrates:

-(...) não é somente o contrário que não recebe em si o seu contrário, mas o mesmo acontece também a coisas que, sem serem mutuamente contrárias umas às outras, possuem sempre em si os contrários, e as quais verossimilmente não receberão jamais uma qualidade que seja o contrário da que nelas existe (...).

(Ibid., p. 118)

E:

-(...) que é que entrando num corpo o faz quente? Não te darei aquela resposta certa, mas simples, que é o calor, mas responder-te-ei com uma mais hábil, dizendo que é o fogo. Perguntas: que é que, entrando num corpo, o torna doente? Não direi que é a doença, mas a febre. Da mesma forma, não irei declarar que um número se torna ímpar devido à imparidade, mas sim devido à unidade, e assim por diante. Examina, entretanto, se compreendeste bem o que quero dizer!

-Compreendi suficientemente – Respondeu Cebes.

-Então responde-me, se puderes: qual é a coisa que, entrando num corpo, o torna vivo?

-A alma.

-Mas é sempre assim?

-Como não!

-Portanto a alma, empolgando uma coisa, sempre traz vida para essa coisa?

-Sempre traz vida!

-Existe um contrário da vida, ou não?

-Existe.

-Qual é?

-A morte.

-Não é verdade que a alma jamais aceitará o contrário do que ela traz consigo?

-Decididamente!

-(...) Bem, e ao que não admite a morte como chamaremos?

-Imortal.

-A alma não admite a morte, pois não é?

-É.

-Logo, a alma é imortal?

-É imortal!

-E, então, afirmaremos ou não que isso está provado? Que achas?

(Ibid., pp. 118-119)

Pelo fato da alma participar da essência da imortalidade – “o imortal é indestrutível” – ela não pode aceitar, de forma alguma, o seu próprio perecer, a sua destruição. Através da incompatibilidade dos opostos, Sócrates argumentará que – com o sobrevir da morte – a alma foge rapidamente do corpo morto, pois não admite misturar-se com seu contrário: o perecimento do corpo não nos permite afirmar que a vida, enquanto essência se torne o seu contrário.

Símias, Cebes e os demais discípulos de Sócrates, convencidos de tal argumentação, não conseguem – porém – conter as lágrimas diante do fato de que seu grande mestre, minutos após beber a cicuta, viria a morrer. O diálogo Fédon, representa um momento decisivo e um dos pilares nos quais a tradição de pensamento ocidental irá se apoiar. Assim morre Sócrates, julgado por corromper a juventude de sua época e por filosofar em praça pública. Entretanto, morrendo pela busca da verdade e pelo ideal filosófico, entrou para a história do pensamento – conquistando a imortalidade em nossa história – como um dos maiores filósofos de todos os tempos.

Bibliografia:

Platão. Fédon. In: Diálogos/ Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa- 5. Ed.- São Paulo: Nova Cultural, 1991. [Coleção Os Pensadores]

6 comentários:

Unknown disse...

se a relatividade indica que a verdade é subjetiva, despondo de qualquer ponto de vista da realidade aceita como verdade, não seria menos sádico dizer que a verdade não é tão verdade assim e que a verdade deve ser conceituada como figura aparente e momentânea da necessidade humana, para que explique o que ele ja não consegue mais pensar e conceituar! a verdade não existe por que ela não tem uma constância até mesmo para relatividade subjetiva.

Unknown disse...

se a relatividade indica que a verdade é subjetiva, despondo de qualquer ponto de vista da realidade aceita como verdade, não seria menos sádico dizer que a verdade não é tão verdade assim e que a verdade deve ser conceituada como figura aparente e momentânea da necessidade humana, para que explique o que ele ja não consegue mais pensar e conceituar! a verdade não existe por que ela não tem uma constância até mesmo para relatividade subjetiva.

Unknown disse...

Relatividade é negar a verdade logo quando coloco o mundo como relativo de ponho contra aquilo que é objetivo a verdade.

Unknown disse...

Relatividade é negar a verdade logo quando coloco o mundo como relativo de ponho contra aquilo que é objetivo a verdade.

GLAUCIO IMOVEIS disse...

Ycaro pra mim a unica coisa constante é a verdade, mas por ela nao ser minha nem sua, nao entraremos em acordo tao cedo...

Érica Gui disse...

O sol desponta sem perguntar a Donald Trump ou Kim Jong-un se deve ou não nascer.