sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

EM BUSCA DO SUJEITO MORAL DA AÇÃO


O COMBATE DA CASTIDADE, A CULTURA DE SI E AS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO: EM BUSCA DO SUJEITO MORAL DA AÇÃO

“Os movimentos contraditórios da alma, muito mais que os próprios atos em sua efetivação, é que serão, nessas condições, matéria da prática moral” [1]

Michel Foucault, na obra História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres, redireciona o foco de sua pesquisa, ao anunciar que não busca agora fazer uma história das representações e uma genealogia dos comportamentos, guinada esta que representa um novo rumo depois do primeiro volume de sua História da Sexualidade. Foucault pretende fazer uma experiência do pensamento em ética contemporânea, fazendo um recuo e um estudo das formas de subjetivação clássica – seguindo também as posteriores morais e modos de subjetivação -, que trataria do homem do desejo. O bem exaltado pertence ao homem e é inalienável: a capacidade de autoconstituição que, mesmo diante de estruturas determinantes e institucionalizadas, representa novas possibilidades e também um pensamento diferenciado.

Para Foucault, o termo “sexualidade” (criado no início do séc.XIX) “não marca a brusca emergência daquilo a que se refere” [2], pois foi apropriado por diversos campos do saber, desde o religioso, científico e jurídico ou, antes disso, se ramificou em diversos campos do saber. Ao invés de remeter ao seu significado, tratava-se de uma experiência de reconhecimento enquanto sujeito desejante através de regras e coerções. “O projeto era o de uma história da sexualidade enquanto experiência (correlação entre campos do saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade).” [3] Colocam-se em questão as tão aceitas teorias acerca do desejo e de seu sujeito. Foucault não faz uma hermenêutica, mas sim um estudo histórico das hermenêuticas que decifravam, a partir do desejo, a verdade do sujeito, ou seja, o seu ser. Tal genealogia faz um recuo histórico de pensamento para trazer algo que mude o olhar que temos em relação ao presente. Para isso surge a pergunta: “como o homem se reconheceu como sujeito do desejo ao longo da história?”

O presente trabalho pretende, de maneira introdutória, perpassar “O Combate da Castidade” e “A Cultura de Si”, explicitando os quatro aspectos das formas de subjetivação expostas na introdução a “O Uso dos Prazeres”. Tentaremos mostrar como a questão da castidade, que aqui representa o domínio máximo de si - buscando abranger também o onírico, ou seja, atingir um estado de pureza que seria atestado até mesmo durante o sono -, torna-se dependente do desenvolvimento de técnicas de si e que, uma vez a pureza atingida, as próprias técnicas se aperfeiçoariam enquanto na busca de um sujeito moral da ação. É importante salientar também que tal sujeito não é um mero agente que obedece ao código de uma sociedade, mas aquele que se conduz refletindo sobre o mesmo e seguindo-o, ou não, segundo uma análise das maneiras pelas quais um preceito ou lei deve ser seguido: “existem diferentes maneiras de ‘se conduzir’ moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação.” [4] Assim, a moral também pode ser compreendida como “a maneira pela qual os indivíduos se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta.” [5]

Dentre os vários aspectos levantados por Foucault no que diz respeito à sexualidade encontra-se o forte laço que o Ocidente construiu entre esta e a verdade, isso porque a questão da sexualidade sempre envolveu a questão da pureza. Em “O Combate da Castidade”, Foucault atestará o privilégio ontológico que concedemos ao vício da fornicação, principalmente por uma ascética (como a dos monges) que busca uma via de purificação, lutando contra os vícios da carne como condição para o acesso à verdade. Partindo da análise das Conferências de Cassiano, gula e fornicação são colocadas lado a lado. A primeira, porém, liga-se a necessidades que, se não supridas, podem prejudicar ou destruir o próprio indivíduo; já a fornicação não, pois segundo Cassiano - citado por Foucault -, embora seja algo natural, lutar contra ela é o mesmo que lutar, na esfera da alma, contra a avareza ou o orgulho, e, uma vez eliminada, concederia ao sujeito uma vida que não seria deste mundo, ou seja, liberta da carne:

É a este além da natureza, na existência terrestre, que a luta contra a fornicação nos dá acesso. Ela nos “arranca da lama terrestre”. Ela nos faz viver neste mundo uma vida que não é deste mundo. Por ser radical, é esta mortificação que nos traz, já neste mundo, a mais alta promessa [...] Vemos portanto como a fornicação, ao mesmo tempo em que é um dos oito elementos do quadro dos vícios, se encontra em relação aos outros numa situação especial: à testa do encadeamento causal, no princípio do recomeço das quedas e do combate, em um dos pontos mais difíceis e mais decisivos do combate ascético. [6]

Convém lembrar que, segundo tal relação causal, derrubar um vício precedente significa ganhar maiores chances de vencer um vício posterior. Vencer os vícios – e, consequentemente, desenvolver as virtudes -, por sua vez, é considerado um trabalho ético. Isso implica uma lógica que colocará a castidade como centro de toda uma questão, mas para isso deve-se ter um alto controle sobre si mesmo, pois tal exercício demandaria o desenvolvimento de técnicas refletidas - e severas - que voltariam a atenção do sujeito para ele mesmo. A fornicação da qual trata Cassiano não é aquela na qual há o encontro de corpos, mas sim no nível de uma vontade, da fantasia e do sonho: no plano do pensamento. A ascese começaria pela tentativa de abandono dos movimentos do corpo; depois passaria pela luta contra a implicação imaginativa – ou seja, o asceta não poderia se deter ao conteúdo de seu espírito -; seguindo adiante, os movimentos do corpo teriam que ser realmente abandonados e as representações acerca do objeto de desejo, eliminadas. Por último, teríamos a eliminação da polução noturna, como símbolo máximo de pureza e indício de que o corpo não mais necessitaria de tal vício, garantindo, assim, a pureza ritual.

Ao longo do processo, toda uma luta contra a vontade e suas imagens foi necessária e, portanto, o monge estaria atento à distinção dos atos voluntários e dos atos involuntários, exercendo um controle sobre esses últimos. Segundo Foucault em “A Cultura de Si” [7], exige-se mais austeridade daqueles indivíduos que queiram levar outra vida que não aquela “dos mais numerosos”: a base não é a submissão ao código, mas uma intensificação na relação que se tem consigo mesmo. Assim, o sujeito se constituiria como sujeito moral de suas ações.

Convém enumerar, por fim, a especificação dos quatro modos de subjetivação, os quais Foucault explicita na introdução de sua História da Sexualidade 2, sendo estes os diferentes modos ou maneiras de “se conduzir” diante de um preceito, lei ou código dado:

A determinação da substância ética é a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral [...]. O modo de sujeição é a maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática [...]. Existem também diferenças possíveis nas formas da elaboração do trabalho ético que se efetua sobre si mesmo, não somente para tornar seu próprio comportamento conforme uma regra dada, mas também para tentar se transformar a si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta [...]. Finalmente, outras diferenças dizem respeito ao que se poderia chamar de teleologia do sujeito moral: pois uma ação não é moral somente por si mesma e na sua singularidade; ela o é também por sua inserção e pelo lugar que ocupa no conjunto de uma conduta; ela é um elemento e um aspecto dessa conduta, e marca uma etapa em sua duração e um progresso eventual em sua continuidade. Uma ação moral tende à sua própria realização; além disso, ela visa, através dessa realização, a constituição de uma conduta moral que leva o indivíduo, não simplesmente a ações sempre conformes aos valores e às regras, mas também a um certo modo de ser característico do sujeito moral. [8]

BIBLIOGRAFIA:

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. O Combate da castidade. In: ARIÈS, Philippe et BÉJIN, André. (Org.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

PRADEAU, Jean-François. O sujeito antigo de uma ética moderna. In: Gros, F (org.) Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial.


[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. p. 27.

[2] Ibid. p. 9.

[3] Ibid. p. 10.

[4] Ibid. p. 27.

[5] Ibid. p. 26.

[6]FOUCAULT, Michel. O Combate da castidade. In: ARIÈS, Philippe et BÉJIN, André. (Org.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 28-29.

[7]FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.p. 46.

[8]FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. pp. 27-28.

Um comentário:

Elis Vasconcelos disse...

Apesar de não gostar nenhum pouco desse careca, por gostar de você li o trabalho! Achei interessante a questão que levantou de como o homem se reconheceu como sujeito do desejo ao longo da história (Porque, obviamente, tem história no meio...rs!)
E também considerei relevante a parte de desenvolver as virtudes e
tentar transformar-se em sujeito moral de sua própria conduta.
:)