domingo, 3 de janeiro de 2010

Por uma educação não autoritária


A ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL E A BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO NÃO AUTORITÁRIA

O educador não tem o senso do fracasso justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda. [1]

A experiência de uma educação calcada na construção do saber, ao invés de um simples depositário de conhecimento, vem revelando novas perspectivas pedagógicas, levando o alunado, bem como o professor, a novos empreendimentos, tanto pessoais, cidadãos, como profissionais. É importante destacar que o processo educativo começa muito antes do período escolar, pois muitos alunos, como herança da família, carregam visões de mundo que, mesmo embrionárias, possuem profundas raízes. Tais visões e convicções da criança, ou do jovem, constituem materiais que não devem ser abandonados por uma psicologia aplicada à avaliação da aprendizagem que vise o aluno como um todo, inclusive a superação de suas dificuldades com o conhecimento de sua específica condição histórica e cultural.

O presente trabalho busca analisar, dentro de linhas gerais, o conceito de zona de desenvolvimento proximal; conceito que foi marcante na obra de Lev Semenovich Vygotsky e que servirá como eixo para a nossa abordagem e defesa de uma educação não autoritária, visão compartilhada por outros autores que também apresentaremos aqui. Tal concepção representa nada mais do que a adesão a uma educação que tem como base o diálogo para a construção do saber e para o desenvolvimento mental do aluno, não avaliando somente os resultados, mas também o processo de desenvolvimento. Antes visto apenas como um meio sem muita importância, o processo pelo qual o estudante passa, necessariamente para alcançar um resultado, constituirá análise importante para a psicologia sócio-histórica de Vygotsky. A zona de desenvolvimento proximal distingue-se do desenvolvimento real, que representa o conhecimento concreto e individual, e revoluciona toda a noção de desenvolvimento, uma vez que não privilegia somente o concreto do conhecimento, abrindo as portas para um possível desenvolvimento da capacidade de abstração, ou seja, da formação de um conhecimento baseado em relações complexas entre seus objetos de estudo. Antes, porém, devemos entender o conceito de mediação simbólica para que tenhamos uma base sólida e partir para esses dois elementos que pretendemos explicitar.

A mediação calca-se na ideia de que a relação do homem com o mundo não é direta, mas mediada pelo simbólico, ou seja: essa relação indireta é mediada pelo uso de instrumentos e signos. O uso dessas mediações, segundo Vygotsky, explicita a psicologia humana fundamental, que é a internalização das atividades, sejam instrumentais ou simbólicas: o instrumento sendo direcionado para a resolução de algo exterior ao indivíduo e o símbolo direcionado para a resolução de algo interior. Isso revelaria a “plasticidade” do cérebro humano, pois abria campo para novas funções, que poderiam surgir também com a vida do indivíduo, no desenrolar de sua trajetória sócio-histórica. O uso de tais artifícios carrega consigo um processo de internalização. E, em muitos casos, o outro passa a constituir papel fundamental para o desenvolvimento desse processo. Na psicologia sócio-histórica o sujeito é valorizado não somente pela mediação que representa, mas pela troca que constitui com outros para a construção do conhecimento e de uma identidade que não é fixa, muito menos absoluta.

Uma suposta carga cognoscitiva e afetiva que o aluno traz de processos educativos mais gerais (como a família) passa a ser considerada importante quando se desenvolve uma prática pedagógica. Constitui-se, assim, grande erro a crença de que o processo de aprendizagem começa como uma primeira aula, como explicita Bachelard:

Acho surpreendente que os professores de ciências, mais do que os outros se possível fosse, não compreendam que alguém não compreenda. Poucos são os que se detiveram na psicologia do erro, da ignorância e da irreflexão. O livro de Gérard Varet (Essai de Psychologie objective. L’Ignorance et L’Irreflexion) não teve repercussão. Os professores de ciências imaginam que o espírito começa como uma aula, que é sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repetição da lição, que se pode fazer entender uma demonstração repetindo-a ponto por ponto. Não levam em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana.[2]

No caso de Bachelard, o progresso na ciência, com um sentido pedagógico implícito, baseia-se no abandono de erros passados e no empreendimento de novos métodos, que, por sua vez, um dia serão ultrapassados. O sentido de mudança, como fruto da dialetização dos saberes, é necessário para que um conhecimento novo surja. E esse saber nasce num plano discursivo, ou seja, coletivo, no qual a repetição fica em segundo plano em prol de um jogo de polêmicas que faria com que o aluno compreendesse o sentido que tal conhecimento possui e a partir de quais perguntas ele surgiu. Para Bachelard, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Não estamos nos colocando muito longe da psicologia sócio-histórica ao citar Bachelard, uma vez que, para o filósofo, a epistemologia deve ser histórica e o conhecimento, no caso o científico, deve ser fruto da discussão da cidade científica, com uma pedagogia muito peculiar.

A crítica de Vygotsky em relação à psicologia, quando em sua análise do desenvolvimento mental da criança, está na extrema valoração conferida ao desenvolvimento real (ou seja, aquilo que a criança consegue fazer por si mesma, de caráter individual) em detrimento de um outro desenvolvimento, que poderia nos revelar muitos mais sobre a formação dos ciclos mentais. Esse outro aspecto, não valorizado pela tradição, representa o conjunto de resoluções realizadas pela criança sob a tutela de alguém ou sob o fornecimento de pistas para que tal objetivo possa se cumprir. Vygotsky atestou que crianças com o mesmo desenvolvimento real (ou seja, com a mesma capacidade de resolução de problemas individuais) diferiam quando o segundo caminho era proposto, ou seja, quando a resolução consistia num trabalho coletivo ou segundo auxílios. Essa diferença Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal.

A zona de desenvolvimento proximal, assim, representa

A distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. [3]

Segundo Vygotsky, essa zona refere-se às funções que ainda não amadureceram, sendo que seu estímulo capital é a interação e o diálogo, ou seja, o trabalho coletivo. O papel da imitação também é enxergado numa nova perspectiva, pois ao entrarmos num esquema cooperativo, imitamos, internalizamos o instrumental e o simbólico; mas também criamos um diálogo interno que pode ser um grande operador de transformações no indivíduo.

O papel do educador, não importando à qual disciplina ele pertença, não deve se basear numa estrutura gnoseológica definitiva, e sim num processo coletivo de criação e de descoberta, no qual o aluno passa a ser central. Sendo assim, os desdobramentos que podemos enxergar no caráter avaliativo são muitos. Segundo Romão, “a avaliação deixa de ser um processo de cobrança para se transformar em mais um momento de aprendizagem, tanto para o aluno quanto para o professor”. [4] Isso significa que a avaliação não deve ter como foco principal o resultado do processo de conhecimento, mas o sim o processo de conhecer; e mais do que individual: a avaliação deve levar em grande consideração o processo de conhecer que se dá no âmbito cooperativo. Ela pode nos revelar, e também desenvolver no aluno, capacidades que se apresentavam apenas em potencial e que necessitavam de mediação para que se efetivassem.

Romão enfatiza que tais concepções de educação e avaliação representam uma pedagogia cidadã e, em oposição ao quadro positivista, ele exalta uma prática que estimule a dinamicidade no ensinar e no aprender, ou seja, em sua constante reconstrução:

A educação e a avaliação positivistas enfatizam a permanência, a estrutura, o estático, o existente e o produto; as construtivistas reforçam a mudança, a mutação, a dinâmica, o desejado e o processo. A educação e a avaliação cidadãs devem levar em consideração os dois pólos, pois não há mudança sem a consciência da permanência; não há processo de estruturação-desestruturação-reestruturação sem domínio teórico das estruturas – a reflexão exige “fixidades” provisórias para se desenvolver; não há percepção da dinâmica sem consciência crítica da estática; o desejado, o sonho e a utopia só começam a ser construídos a partir da apreensão crítica e domínio do existente, e o processo não pode desconhecer o produto para não condenar seus protagonistas ao ativismo sem fim e sem rumo. [5]

O obstáculo que temos que transpor (e que deve ser profundamente conhecido), enquanto mestres, basicamente é a nossa concepção ultrapassada de avaliação, que muitas vezes entrava o progresso do conhecimento e empobrece a prática pedagógica, influenciando negativamente o procedimento avaliativo, e tornando-a somente a contemplação de um único aspecto, que pode não dizer muito sobre o aproveitamento e desenvolvimento do aluno, este avaliado individualmente. Afinal, o aluno está sendo preparado para trabalhar e cooperar em sociedade, seja em qualquer âmbito. E não para ser um sujeito isolado, fora da esfera social.

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento objetivo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006

ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação Dialógica: desafios e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2001

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.


[1] BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento objetivo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 24.

[2] Ibid. p. 23.

[3] VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente São Paulo, Martins Fontes, 1984. p.97.

[4] ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação Dialógica: desafios e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2001. p. 88.

[5] Ibid. p. 89.

Um comentário:

Elis Vasconcelos disse...

Simplesmente A-M-O Lev Semenovich Vygostky!!! \o/
.huhuhu.
xD

O seu trabalho está tão bom quanto o meu...rs
bacio
;*