segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Dominação e Escravidão

Fenomenologia do Espírito; Capítulo IV- A verdade da certeza de si mesmo – A – INDEPENDÊNCIA E DEPENDÊNCIA DA CONSCIÊNCIA-DE-SI: DOMINAÇÃO E ESCRAVIDÃO.

-Hegel expõe o conflito interno de cada sujeito entre o desejo por si mesmo e o desejo pelo outro, como necessidade de reconhecimento inerente a todo ser humano, em virtude do qual cada eu aspira a ser reconhecido por outrem assim como também aspira à sua destruição.

§186

De início, a consciência-de-si é ser-para-si simples, igual a si mesma mediante o excluir de si todo o outro.

-Segundo Kojève, o Ser-para-si nega os outros em um primeiro momento;

-Nesse primeiro momento nós ignoramos que “a consciência se acha numa outra”, pois temos a tendência de achar que é nela mesma que ela se encontrará. Nós ignoramos um aspecto de alienação, de estranhamento: ela vai encontrar ela mesma em um lugar que não é o seu próprio.

-Caímos no solipsismo, pois excluímos o outro no que se refere ao autoconhecimento.

-Tomamos consciência de que somos desejo.

Para ela, sua essência e objeto absoluto é o Eu; e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é [um] singular. O que é Outro para ela, está como objeto inessencial, marcado com o sinal do negativo. Mas o Outro é também uma consciência-de-si; um indivíduo se confronta com outro indivíduo.

-Inicialmente, a autoconsciência se manifesta como caracterizada pelo apetite e o desejo, ou seja, como tendência a se apropriar das coisas e fazer tudo depender de si, a “tolher a alteridade que se apresenta como vida independente”.

-O outro é visto como objeto;

-Esse “objeto” vai ser o único “objeto” que também será um sujeito: fará com a consciência o que ela faz com esse “objeto”. Um confronto de consciências está para se anunciar. Ambas as consciências podem desejar um mesmo objeto, a outra consciência (como se fosse um objeto) ou, ainda, uma terceira consciência (vista também como objeto).

-Nessa imediatez, a consciência pretende possuir o objeto no momento que lhe convém, a qualquer custo. Ela quer “aqui e agora”, como uma criança. Entretanto, após entrar no confronto com outra consciência, essa deixará de ser vista como inessencial: inicia-se a luta de vida ou morte.

Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são um para o outro, à maneira de objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no ser da vida – pois o objeto aqui se determinou como vida. São consciências que ainda não levaram a cabo, uma para a outra, o movimento da abstração absoluta, que consiste em extirpar todo ser imediato, para ser apenas o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma.

-O desejo dos desejos é o desejo por a si mesmo, de retorno a si, de plenitude, de totalidade.

-Segundo Alexandre Kojève, “Ser homem é não ser retido por nenhuma existência determinada. O homem tem a possibilidade de negar a natureza e sua própria natureza, seja ela qual for. Ele pode negar a sua natureza animal empírica, pode querer a morte, arriscar a vida. Tal é o seu Ser negativo: realizar a possibilidade de negar e transcender, ao negá-la, sua realidade dada; ser mais e ser outro em relação ao ser que apenas vive.” Continua Kojève: “É preciso realizar a negatividade, e ela se realiza na e pela ação, ou como ação.”

-As consciências que entram em cho que, porém, ainda não tomaram consciência de que são uma para a outra. Entretanto, o passar para o próximo estágio desabrochará no reconhecimento de que o outro é autônomo e livre: para tal, porém, ele tem que ser reconhecido como livre e autônomo por outra consciência livre a autônoma. Jacques d’Hondt coloca que “Dois inimigos só se encarniçam um contra o outro na medida em que um interesse comum mantém o combate. Não existe contradição ativa na indiferença e na exterioridade!”

-O problema do reconhecimento será colocado, mas como uma ambiguidade crucial: quer-se ser reconhecido sem reconhecer.

-O grande obstáculo desse primeiro momento é suprassumir o em-si inicial. Tal tarefa será mediada pela experiência e no embate de consciências, no qual o preenchimento do desejo é visto como não-imediato pela consciência desejante: teremos que percorrer meios que, axiologicamente falando, são menos importantes que os fins. Esse fim é o próprio totalizar-se e o reconhecimento mediado pelo outro.

-O outro é marcado com o sinal de negativo, enquanto a positiva é ela mesma.

Quer dizer: essas consciências ainda não se apresentaram, uma para a outra, como puro ser-para-si, ou seja, como consciência-de-si. Sem dúvida, cada uma está certa de si mesma, mas não da outra; e assim a sua própria certeza de si não tem verdade nenhuma, pois sua verdade só seria se seu próprio ser-para-si lhe fosse apresentado como objeto independente ou, o que é o mesmo, o objeto [fosse apresentado] como essa pura certeza de si mesmo.

-A desigualdade entre ser reconhecido e não ser reconhecido é básica para entender esse jogo de consciências, pois no primeiro momento nós temos somente um reconhecimento mutilado: a consciência é ego-ísta, pois quer considerar-se prioritária no seu reencontro.

-A consciência quer arrancar do outro a visão que ela tem dela, ou seja, a consciência quer ser objetivamente configurada: só assim a sua própria certeza será verdade.

-“Ele (o homem) deve arriscar a vida para forçar a consciência do outro. Deve travar uma luta pelo reconhecimento. Ao arriscar a vida, ele prova ao outro que não é um animal; ao buscar a morte do outro, prova ao outro que o reconhece como homem”, diz Kojève. Na luta pelo reconhecimento, teremos uma consciência que domina e outra que é dominada.

Mas, de acordo com o conceito do reconhecimento, isso não é possível a não ser que cada um leve a cabo essa pura abstração do ser-para-si: ele para o outro, o outro para ele; cada um em si mesmo, mediante seu próprio agir, e de novo, mediante o agir do outro.

-O reconhecimento é essencial e indispensável, mas a vida é tão importante quanto ele.

-Hegel, no devido parágrafo, estabelece que, para que tenhamos um reconhecimento, temos que fazer abstração do ser-para-si: sair dele e ir para o outro, numa espécie de apropriação do outro pelo mesmo e de identidade na alteridade.

-Segundo Reale e Antiseri, “Toda autoconsciência tem necessidade estrutural da outra e a luta não deve ter como resultado a morte de uma das duas, mas a subjulgação de uma à outra”. O dominante será aquele que arriscou a própria vida para ser reconhecido e o dominado será aquele que preferiu viver e ser subserviente.

Obra: HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002.

Foram consultadas, a fim de clarear o denso conteúdo da Fenomenologia, as seguintes obras:

-KOJÈVE, Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora da Universidade do Rio de Janeiro, 2002, pp. 49-54.

- REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Do Romantismo até nossos dias, Vol III, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990, pp. 111-119.

- Dicionário de Obras Filosóficas/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [Verbete: Fenomenolgia do Espírito, pp. 226-229].

-D’HONDT, Jacques. Hegel. Tradução de Emília Piedade. Lisboa: Edições 70, 1984.

sábado, 28 de novembro de 2009

A Teoria da Ideia e a Existência de Deus

A Teoria da Ideia e a Existência de Deus


Para Descartes, a ideia é uma ato representacional, constituindo uma realidade no pensamento sem o comprometimento com a existência material do objeto. Nas três primeiras meditações metafísicas, o itinerário começa com a dúvida metódica (abalando todas as nossas certezas) e logo depois chega-se à descoberta do sujeito pensante, o cogito (primeira certeza indubitável). Porém, o cogito, apesar de resistir a qualquer dúvida, não destroi o argumento do Deus enganador que, por sua vez, só será superado quando Descartes provar que Deus existe e é veraz. A terceira meditação foi formulada com esse objetivo, partindo para uma análise da ideia e do princípio de causalidade, juntamente com a posse da primeira verdade.
O papel desempenhado pela teoria da ideia formulada por Descartes é de suma importância para a prova a posteriori da existência de Deus, pois esse é a ideia de um ser infinito e pleno que concebemos em nosso pensamento, possibilitando a compreensão de nossas carâncias e finitude. Na filosofia racionalista tudo possuí uma causa e o princípio de causalidade é supremo: Descartes partirá das ideias para chegar a Deus; para buscar a causa dessa ideia de um ser para o qual nada falta.
A ideia, enquanto ato, não se diferencia de nenhuma outra: ela possuí uma realidade atual, ou seja, no pensamento. Outra característica da ideia é a sua realidade objetiva, que remete ao conteúdo, à complexidade e aos graus de realidade. Chegamos, aqui, em um ponto importante: algumas ideias possuem mais realidade que outras.
Descartes afirmará que existe uma hierarquia das ideias. Das ideias de propriedades à ideia de objeto fito até a ideia de infinito. A última possuiria mais realidade, sendo inconcebível sua geração a partir das que possuem menos realidade objetiva, lembrando que o conceito de real é bem mais amplo que o de existir.
Como nós, seres finitos, possuímos a ideia de um ser infinito dotado de perfeições atuais? Não podemos supor que nós, finitos, criamos a ideia desse pleno ser, pois estaríamos rompendo com o princípio de causalidade, admitindo que o que possuí menos realidade pode criar o que possuí mais realidade. Somos forçados a aceitar que a ideia de um ser infinito, ao qual nada falta, foi depositada em nós por uma causa que seria a causa dela mesma. Deus existe e é a causa da ideia que temos dele. Enquanto somos somente potência, Deus é atual em todas as suas infinitas qualidades, que podemos conceber, mas jamais compreender em sua totalidade.

sábado, 21 de novembro de 2009

Pro Dia Nascer Feliz


Proposta de discussão acerca do documentário “Pro Dia Nascer Feliz”.

1- Quais são os principais aspectos tratados no documentário “Pro Dia Nascer Feliz”?

2- Quais são os temas que você julga necessitar de maiores investimentos pelo setor público em Educação?

*1*

É importante, antes de tudo, ressaltar que os principais aspectos tratados no documentário não se esgotam na esfera escolar, pois englobam questões mais abrangentes, como a família, a existência, a escolha profissional e a realização pessoal. A escola, porém, é aqui o palco onde é anunciado o escândalo da educação pública que, apesar de encontrarmos exceções, compõe o massivo cenário do Brasil atual.

Em primeiro lugar, ressaltamos a importância da educação como aspecto fundamental na formação humana, com seus consequentes desdobramentos no exercício da cidadania, como destacado no início do documentário a questão da escolha dos dirigentes da pátria.

Em segundo lugar, a precariedade de escolas, localizadas principalmente em áreas muito pobres a nível nacional (o caso de Manari, Pernambuco) e em periferias localizadas a poucos quilômetros dos grandes centros econômicos e turísticos brasileiros. Quanto ao problema da infraestrutura, vimos que “existem 210 mil escolas no Brasil. 13,7 mil não têm banheiro, 1,9 mil não têm água (fonte: Censo escolar 2004/MEC-INEP)”, o que afeta qualquer desenvolvimento saudável do estudante que vive sob tais condições. Além disso, o orçamento que as instituições escolares recebem não supre as reais necessidades das mesmas. A situação torna-se ainda mais gritante ao tomarmos conhecimento da grande jornada que muitos alunos enfrentam para chegar ao estabelecimento escolar, dependendo de meios de transporte em péssimas condições (ônibus superlotados) e sem nenhuma manutenção que, como foi mostrado, deixam de funcionar e comprometem as aulas.

Em terceiro, constatamos, em meio às exceções, o descompromisso de muitos alunos e professores, configurando muitas vezes um conflito em sala de aula, onde as relações passam a ser desgastantes e complicadas para ambos os lados. O desrespeito é o que se vê, nos fazendo refletir se o modelo relacional professor-aluno/aluno-professor não está ultrapassado e nos levando ao fracasso escolar: o professor é visto como um inimigo; o aluno, por sua vez, é visto como um fardo social e psicológico. Os professores faltam e os alunos “matam aula”. Claro que não podemos ignorar aqueles alunos e professores que lutam por uma escola melhor, compondo grupos de estudo e aprofundamento de conteúdo, bem como trabalhos de cunho artístico, que buscam estimular a sensibilidade dos jovens.

Em quarto, ressalto um diálogo estabelecido com as escolas de elite, mas não a um nível infraestrutural, e sim a nível humano. A condição de estudo de muitas instituições particulares é fora do comum (surreal para a realidade educacional brasileira), mostrando o papel que a iniciativa privada, segundo interesses próprios ou não, está desenvolvendo no setor. Isso nos faz refletir até que ponto o Estado pode se ausentar, ou até que ponto ele se ausentou, do compromisso com a educação. Entretanto, os problemas herdados da relação familiar, que se traduzem em angústia, pressão escolar excessiva, medo de reprovação, denunciam sob certa perspectiva o abandono emocional que muitos estudantes sofrem, destacando, assim, a questão da família. Onde ela está e que apoio concede ao estudante? A liberdade de escolha profissional é respeitada por ela? Qual é a carga que o estudante traz de casa para a escola?

Em quinto lugar, acreditamos importante notar o funcionamento do conselho de classe. Nele o desempenho do estudante é traçado em linhas gerais. Admiti-se ou não que o aluno passe de ano letivo, pela melhora de seu desempenho ou pela não piora do mesmo. Um relato curioso de um aluno que passou sem aprender nada (“eu já sabia que iam me passar”) denuncia um furo em tal procedimento: a própria equipe é pressionada para eliminar o excedente do alunado e, por um consenso, o aluno se forma no ensino médio, sem perspectiva alguma, esquecendo que a vida acadêmica só está começando (a probabilidade de fazer um vestibular), procurando o mercado de trabalho, muitas vezes informal, e vivendo para fora de si, tornando-se um estranho para si, perdendo seu caráter crítico, ou seja, alienando-se. A violência, também, foi banalizada. E alguns relatos ressaltam tal perspectiva: alunos que não possuem simpatia pelos outros, fazem ameaças, de morte inclusive, e, num dos casos, a promessa é cumprida.

De uma maneira geral, consideramos os pontos enumerados como importantes questões alarmadas no documentário, pois estas nos forçam a pensar a educação, ao ultrapassar a própria ideia de um problema pertencente a uma instituição fechada, uma vez que diz respeito ao ser humano enquanto tal: o direito de estudar, de ter uma formação e de ser cidadão, características que são fundamentais em qualquer sociedade que preze a cultura e a memória, pois estas são a base da identidade de um povo. “Na maioria das vezes, nós nem temos chances de sonhar”, segundo o depoimento de um aluno. Reformar (ou revolucionar) a escola significaria criar essas chances? Achamos que sim, pois somente desse modo poderemos afirmar que, uma vez que a totalidade do ser social está em crise, a escola é a busca do diferente, da abertura, do diálogo, do novo, da criatividade e não somente uma questão estatística, que reduziria tudo a alguns problemas e, no pior dos casos, mascarando a verdadeira realidade.

*2*

Os temas que julgamos necessitar de maiores investimentos pelo setor público são os que dizem respeito à infraestrutura das escolas, uma vez que elas pecam em condições que favoreçam o estudo ou que animem a equipe pedagógica de alguma forma. Condições básicas, como banheiro, água e ventiladores são mais que necessários para uma escola que vise um desenvolvimento de qualidade. Para tanto, o setor público deveria rever o orçamento destinado às escolas, de modo que o dinheiro fornecido cubra as reais necessidades da instituição.

Outro que acreditamos ser de suma importância é o investimento no professor. Não somente numa perspectiva salarial, mas num aperfeiçoamento acadêmico, visando uma atualização do mesmo ante os centros de pesquisa brasileiros e/ou internacionais, coisa esta que é típica de universidades, mas que faria diferença se fosse aplicada no ensino básico. Com um salário de miséria, o a maioria dos professores se desanima ou não se dedica na docência, tornando-se uma massa de insatisfeitos com o Estado e deixando, mesmo que as condições de trabalho e de vida estejam difíceis, que a escola assim continue.

Os investimentos necessários, por sua vez, acarretariam outra necessidade: a fiscalização; para que tenhamos certeza de que os recursos estão sendo aplicados em benefícios para as escolas e não, como frequentemente se vê na política de uma forma alarmante, desviados para paraísos fiscais, em prol de interesses pessoais, que só retardam o crescimento de qualquer setor de nossa sociedade.

O Uso dos Prazeres


História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres

Introdução:

1- Modificações;

2- As formas de problematização:

1.Um medo,

2.Um esquema de comportamento,

3.Uma imagem,

4.Um modelo de abstenção;

3- Moral e prática de si.


1- Modificações:

-Foucault delineia a sua mudança de rumo na pesquisa: “Meu propósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das práticas sexuais de acordo com as formas sucessivas, sua evolução e difusão. Também não era minha intenção analisar as ideias (científicas, religiosas ou filosóficas) através das quais foram representados esses comportamentos.”

-Evidencia, assim, que não fará uma genealogia dos comportamentos e sim uma experiência do pensamento em ética contemporânea, que trataria do homem do desejo. Este, por sua vez, não possuiria uma essência fundamental. Se detendo, em particular, na noção de sexualidade, Foucault pretende estudar o desejo e o sujeito desejante, tomando distanciamento em relação a essa noção, contornando sua evidência familiar, analisando o contexto teórico e prático ao qual ela é associada.

-Para Foucault, o termo “sexualidade” (criado no início do séc.XIX) “não marca a brusca emergência daquilo a que se refere”, pois foi apropriado por diversos campos do saber, desde o religioso, científico e jurídico ou, antes disso, se ramificou em diversos campos do saber. Ao invés de remeter ao seu significado, tratava-se de uma experiência de reconhecimento enquanto sujeito desejante através de regras e coerções. “O projeto era o de uma história da sexualidade enquanto experiência (correlação entre campos do saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade).”

-Esse projeto historicista, se choca com as concepções tradicionais, que enxergam o sujeito desejante como uma invariante encoberta que se manifesta de diferentes maneiras.

-Entretanto, falar de uma experiência histórica singular nos colocaria outros problemas, principalmente, no que diz respeito ao reconhecer-se como sujeito de uma sexualidade, pois colocam em questão as tão aceitas teorias acerca do desejo e de seu sujeito. Foucault não faz uma hermenêutica, mas sim um estudo histórico das hermenêuticas que decifravam, a partir do desejo, a verdade do sujeito, ou seja, seu ser. Tal genealogia faz um recuo histórico de pensamento para trazer algo que mude o olhar que temos em relação ao presente. Para isso surge a pergunta: “como o homem se reconheceu como sujeito do desejo ao longo da história?”

-Tal empreendimento, que basicamente partiu da busca das condições que possibilitaram o surgimento de uma concepção de desejo, faria necessário um estudo dos jogos de relações de si consigo mesmo e a constituição de si mesmo como sujeito. Foucault, assim, busca evidenciar elementos capitais para uma história da verdade ou da dicotomia verdadeiro-falso.

-“Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando se olha como doente, quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser trabalhador, quando ele se julga e se pune enquanto criminoso? Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem do desejo?”, questiona Foucault.

-A problemática desenvolvida desembocará no entrelaçamento visível entre sexualidade e preocupação moral. Sendo um entrelaçamento artificial ou não, Foucault buscará as condições de possibilidade que permitiram a valorização moral do sexual: “por que o comportamento sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionados, são objeto de uma preocupação moral?”, “por que esse cuidado ético é mais valorizado do que outras esferas vitais e/ou sociais?” Entramos de imediato, pois, no problema da transgressão onde o recuo de uma dada regra é considerada falta grave. Porém Foucault enfatizará que, mais do que isso, a grande questão é a de que a preocupação moral será tão maior quanto menor for a obrigação e/ou a proibição.

-O objetivo que o conduzirá ao longo da obra é claramente delineado: “definir as condições nas quais o ser humano ‘problematiza’ o que ele é, e o mundo no qual ele vive.”

-A “estética da existência” será abordada, juntamente com a noção fundamental de “artes da existência” (práticas importantes, exercícios de autoconstituição, técnicas da existência): escolhas pessoais sem a imposição de leis, o que significa que não existem leis severas que regem as escolhas pessoais. É exaltada a possibilidade de “fazer de sua vida uma obra que seja portadora de valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”, ou seja, de que a própria vida é um trabalho permanente. Essas técnicas foram desvalorizadas ao longo da história, mas Foucault quer resgatá-las para um exercício de reflexão, visando, assim, uma mudança de perspectiva e de vida.

-Longe de uma hermenêutica, Foucault pretende fazer um diagnóstico do presente, “analisando, não os comportamentos, nem as ideias, não as sociedades, nem sua ideologias, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam.”


2- As formas de problematização:

-Foucault substitui uma história dos sistemas de moral, feita a partir das interdições, por uma história dos sistemas de moral, feita a partir das interdições, por uma história das problematizações éticas, feita a partir das práticas de si.

-Foucault exalta as diferenças entre a “moral sexual do cristianismo” e a “moral sexual do paganismo antigo”, traçando-as, principalmente, em relação à natureza do ato sexual, fidelidade monogâmica, relações homossexuais e castidade, mostrando que, embora o cristianismo tenha supervalorizado tais temáticas (levando-as ao extremo das discussões morais), o paganismo antigo não se guiou arduamente por tal caminho. Entretanto, podemos encontrar, nos escritos antigos, problematizações de natureza moral envolvendo tais temáticas. Esse fato ilustra, também, o olhar sempre novo que podemos lançar sobre a história.

1.Um medo: Foucault exemplifica uma problematização marcante na medicina e na pedagogia que se inspira em concepções como as do médico grego Areteu: grandes males virão para aqueles que abusarem de seu sexo. O grande “castigo” é a própria degradação do organismo e, consequentemente – a nível global –, da raça.

2.Um esquema de comportamento: Entre os modelos apresentados, o “modelo do elefante” de São Francisco de Sales, representando uma variação da Histoire Naturelle de Plínio, postula que o exemplo do elefante é um exemplo de moralidade sexual: pelas e honestas disposições são observáveis no acasalamento desse animal. Seguir seu exemplo conferiria, para os moralistas, um grande valor. A austeridade torna-se evidente, na medida em que uma ascese só é possível através de um rigor, não exigido por leis fixas, mas por condutas morais que têm como motor o próprio sujeito “consigo mesmo”. Os escritos, as sínteses de pensamento, os “mandamentos” e as fabulações são, aqui, os princípios e/ou os motivadores que nos fariam refletir sobre nossas práticas.

3.Uma imagem: Perfis de condutas são traçados ao longo da história, muitos considerados desvios da natureza. Sendo assim, há uma descrição que os desqualifica. Muito mais do que a questão sexual, os perfis englobavam o comportamento numa visão mais ampla. Por exemplo: na Antiguidade grega, onde as relações homossexuais eram aceitas, o perfil do efeminado era negativo, pois, mais do que virilidade, relacionava-se com questões de pudor e do próprio sentido de ser cidadão, uma vez que denotava um sentido de passividade e inversão de papéis morais e políticos, também visíveis fisicamente.

4.Um modelo de abstenção: “Um herói virtuoso que é capaz de se desviar do prazer, como uma tentação na qual ele sabe não cair, é uma figura familiar ao cristianismo, como foi corrente a ideia de que essa renúncia é capaz de dar acesso a uma experiência espiritual da verdade e do amor, a qual seria excluída pela atividade sexual. Mas é igualmente conhecida da Antiguidade pagã a figura desses atletas da temperança que são suficientemente senhores de si e de suas concupiscências para renunciar ao prazer sexual.”. No entanto, mesmo que tracemos pontos comuns entre ambas, o paganismo antigo e o cristianismo não formam uma relação de continuidade (no sentido pleno do termo), pois, no caso do paganismo, víamos uma pluralidade de condutas morais, dirigida, na maioria das vezes, a homens. Além do mais, esses modelos não se impuseram como obrigação, mas como um “suplemento moral”: aqueles capazes, o seguiriam. O acesso à verdade através da áskesis (purificação) traria benefícios ao próprio sujeito, com efeitos muito mais amplos do que somente de um âmbito exclusivamente cognitivo. Essa reflexão moral se dirige aos homens, prescrevendo que “eles devem fazer uso de seu direito, de seu poder, de sua autoridade e de sua liberdade”.


3-Moral e prática de si

-Foucault trabalha o conceito de moral, considerando duas compreensões que podemos ter: “um conjunto de regras e valores de ação propostas aos indivíduos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos ou o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos.” Entre a tensão das duas faces de um conceito, temos também, acima das duas e representando uma característica ímpar do sujeito singular, “a maneira pela qual é necessário ‘conduzir-se’”.

-As práticas refletidas são, aqui, de suma importância, pois representam a oportunidade do sujeito, enquanto sujeito moral, de ser o sujeito de suas próprias ações, independentemente de qualquer instituição mais abrangente na qual ele esteja inserido.

-O objetivo, então, é ser um sujeito ativo e não, simplesmente, um agente. Em sua pesquisa, Foucault exalta a capacidade de divergência, a partir de práticas refletidas e exercícios de autoconstituição, que, muito mais do que nos fazer seguir os ditos de algum código, nos fazem ampliar o leque de possibilidades no que diz respeito às maneiras de se conduzir.

-Segundo Foucault: “Elas concernem ao que se poderia chamar determinação da substância ética, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral”. E mais: “Os movimentos contraditórios da alma, muito mais que os próprios atos em sua efetivação, é que serão, nessas condições, a matéria da prática moral”.

-Devemos, assim, estar atentos ao modo de sujeição, que denota a relação que o sujeito estabelece com relação aos códigos que “supostamente” o rege. Mais do que uma total oposição entre códigos e subjetivação: o sujeito permeia, julga e reflete sobre essas duas instâncias.

A Verdade da Certeza de si mesmo


Fenomenologia do Espírito; Capítulo IV- A verdade da certeza de si mesmo

§167

Enumeramos aqui passagens relevantes para a compreensão do referente parágrafo.

- Com a consciência-de-si entramos, pois, na terra pátria da verdade.

Esse é o primeiro momento, especificado por Hegel, do caminho percorrido pelo espírito para a conquista da autoconsciência, onde encontramos uma consciência fechada em-si, que observa o mundo sensível e o toma como verdade independente de si. Estamos, por enquanto, na primeira fase do momento da consciência, onde o particular é tomado como verdade. Segundo Alexandre Kojève (Introdução à Leitura de Hegel, p. 47), “a consciência-de-si é certeza e verdade: a verdade de uma certeza e a certeza de uma verdade”. Há, porém, uma oposição fundamental entre sujeito e objeto.

-Se consideramos essa nova figura do saber – o saber de si mesmo – em relação com a precedente – o saber de um Outro – sem dúvida, que esse último desvaneceu; mas seus momentos foram ao mesmo tempo conservados; a perda consiste em que estes momentos aqui estão presentes como são em si.

-Assim, o que parece perdido é apenas o momento-principal, isto é, o subsistir simples e independente para a consciência.

Mesmo que o particular apareça como verdade, ele é contraditório, começamos a perceber que existe algo que “nos lança impressões”. Percorreremos, então, o caminho proposto por Hegel: a dialética, na qual teremos um momento “negativo” e “positivo”. Os opostos, então, se reconciliam, pois o afirmativo já trás consigo a sua negação. Não há um desaparecimento do oposto, só uma supressão da característica que o particularizava, pois ele continua a existir no outro, que é ele mesmo. Hegel pretende nos mostrar o dinamismo que rege a maneira pela qual a consciência mostra-se para nós. Há um momento do em-si, do estático. Após esse momento temos uma saída de si, na qual nos confrontamos com os objetos, mas que foi preparada necessariamente pelo primeiro momento, que impulsionou a consciência pela busca da verdade, em detrimento da certeza inicial.

-Mas de fato, porém, a consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro.

Hegel quer destacar que o outro é figura capital, ou seja, integralmente importante no autoconhecimento: as ações começam no eu, passam pelos outros e voltam para o eu (refluxo). O movimento próprio do Espírito é o “movimento do refletir-se em si mesmo”: há três momentos; um do ser em si; o outro do ser “fora de si” ou “ser outro” e um terceiro que é o do “retorno a si” ou “ser em si e para si.”

-Para a consciência-de-si, portanto, o ser-Outro é como um ser ou como momento diferente; mas para ela é também a unidade de si mesma com essa diferença, como segundo momento diferente.

Como ressaltado na História da Filosofia de Giovanni Reale e Dario Antiseri (Volume 3, p.108): “O momento dialético está presente em todo o momento da realidade (...): a semente deve transformar-se no seu oposto para tornar-se broto, ou seja, deve morrer como semente; a criança deve morrer como tal e transformar-se no seu oposto para tornar-se adulto, e assim por diante. O negativo que emerge do momento dialético, em geral, consiste na “falta” que cada um dos opostos revela quando se defronta com o outro. Mas é exatamente essa “falta” que se revela como a mola que impele, para além da posição, a uma síntese superior, que é o momento especulativo, ou seja, o momento culminante do processo dialético.”

-O mundo sensível é para ela um subsistir, mas que é apenas um fenômeno, ou diferença que não tem em si nenhum ser. Porém essa oposição, entre seu fenômeno e sua verdade, isto é, a unidade da consciência-de-si consigo mesma. Essa unidade deve vir-a-ser essencial a ele, o que significa: a consciência-de-si é desejo, em geral.

Esse caminho que começa a se delinear é o a autoconsciência, no qual a consciência começa a entender o que ela é. Hegel exalta o seu caráter de apropriação, no qual o outro é visto como um objeto de desejo: um meio para o fim. Nesse momento a consciência quer fazer tudo depender de si; ela tenta excluir a alteridade independente de si, seguindo seu apetite. Entretanto, o outro passará de não essencial para capital, pois essa autoconsciência irá se confrontar com outras e isso significa que ela não poderá ficar estática.

-A consciência tem de agora em diante, como consciência-de-si, um duplo objeto: um, o imediato, o objeto da certeza sensível e da percepção (...), o segundo objeto é justamente ela mesma, que é a essência verdadeira e que de início só está presente na oposição ao primeiro objeto. A consciência-de-si se apresenta aqui como o movimento no qual essa posição é suprassumida e onde a igualdade consigo mesma vem-a-ser para ela.

Como conclusão, temos a consciência como algo que depende do contato, do confronto com o outro, pois ela surge dessa oposição, tornando-se, depois, um objeto mesmo de sua própria consciência. Giovanni Reale e Dario Antiseri ilustram com a seguinte passagem de Hegel (p. 118): “O indivíduo que não pôs a vida em risco pode muito bem ser reconhecido como pessoa (em abstrato), mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como reconhecimento de autoconsciência independente”.


Foram consultadas, a fim de clarear o denso conteúdo da Fenomenologia, as seguintes obras:

KOJÈVE, Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora da Universidade do Rio de Janeiro, 2002.

- REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Do Romantismo até nossos dias, Vol III, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990.