quarta-feira, 27 de julho de 2011

Do niilismo à transvaloração de todos os valores: a vida como fiel da balança


Resumo: O seguinte trabalho tem como objetivo primordial caracterizar os três momentos capitais do niilismo e suas relações com a noção de valor, seguindo os passos de Nietzsche em sua “crítica ao niilismo”. Concluiremos com o que se depreende do caminho percorrido pelo filósofo no que concerne ao seu projeto de uma transvaloração de todos os valores.

Do niilismo à transvaloração de todos os valores: a vida como fiel da balança

Por Marcelo Inague Júnior[1]

(...) Vemos que não alcançamos a esfera em que pusemos nossos valores – com isso a outra esfera, em que vivemos, de nenhum modo ainda ganhou em valor: ao contrário, estamos cansados, porque perdemos o estímulo principal. “Foi em vão até agora!”.

Nietzsche, “Sobre o niilismo e o eterno retorno (1881-1888), §8.

O pensamento de Nietzsche se impõe frente a uma tradição que sustenta categorias metafísicas que se constituem como hipostasias. As categorias que supostamente assegurariam a estabilidade do real são apoiadas em noções preconcebidas nas quais estão implícitos jogos de valor. O niilismo aparece, então, como um efeito imediato da tomada de consciência em relação ao vazio dos fundamentos, que possuíam a pretensão de sustentar a estabilidade do mundo fenomênico, do mundo do devir. Nietzsche radicalizará a crença na ausência de valor no interior da própria existência, uma vez que levará às últimas consequências a postura niilista diante da então chamada “realidade”: buscará, entretanto, a sua superação na formulação da noção da vontade de poder, que se entrelaça à própria vida. O caminho que percorreremos consiste na crise das categorias metafísicas como ponto de partida; depois, partiremos para a abordagem da totalidade como constelação relacional e para a descoberta e descrição da dinâmica de forças que se integram num vetor direcionador, a chamada vontade de poder. A partir dessas pequenas considerações poderemos nos aproximar do que Nietzsche chamou de uma transvaloração de todos os valores.

O niilismo enquanto estado psicológico aponta para uma crise dos fundamentos metafísicos dos valores, até então tidos como certos e absolutos. Nietzsche aponta para a situação na qual nos encontramos quando nos deparamos com a insuficiência que as categorias metafísicas apresentam na sua tentativa de serem os pilares que sustentam a realidade, o que culmina na crença da ausência de valor. O homem, assim, encontra-se frente a uma perda de sentido que, pressupostamente – segundo a tradição filosófica –, orientaria, estabilizaria ou regeria o mundo do devir. O que o filósofo empreende, com isso, é levar às últimas consequências um mundo sem a existência de categorias metafísicas: um mundo pensado numa suspensão radical de todas as categorias metafísicas; a morte de Deus.

Nietzsche nos fala de três “etapas”, três momentos nos quais o niilismo entra em cena: o primeiro representa uma crise da categoria “meta”. Nietzsche, aqui, descreve o niilismo como um acontecimento no qual tomamos consciência da “dissipação de força”: diante de “uma agonia do ‘em vão’” o homem não vê mais um sentido que se daria no processo do devir, uma finalidade a qual o devir visaria. Diante desse impasse, da desilusão frente à inexistência de uma meta, o homem compreenderia que “com o devir nada é obtido, nada é alcançado”. Em outras palavras, o devir – em sua incessante transformação – não teria uma finalidade dada de antemão para a qual se direcionaria. O primeiro pilar foi abalado: eis a primeira causa do niilismo.

O segundo momento do niilismo enquanto estado psicológico gira em torno da categoria metafísica da “unidade”. Nietzsche nos diz que esse segundo momento se dá quando o homem tece uma totalidade, uma sistematização: cria uma substância que subjaz o devir, que forneceria a ele uma organização. Entretanto, e ao mesmo tempo, o homem perde a crença num “universal como tal”, numa unidade. Para Nietzsche, a totalidade concebida e sustentada por uma unidade tem como fim a crença em seu próprio valor. É, portanto, uma criação e não algo dado de antemão: diante da descrença num universal, abre-se o espaço de compreensão para o homem descobrir suas ficções.

O terceiro momento, por sua vez, é a sua forma derradeira, como acentua Nietzsche. Considerando os dois momentos anteriores, o do fracasso na tentativa de sustentar uma “meta” e uma “unidade”, Nietzsche nos alerta para um último plano de fuga com relação à suposta incompletude ontológica do devir: considerá-lo como ilusório, afirmando, assim, a existência de um mundo para além do mundo do devir – que considera o devir como um mundo falso, um mundo de erro. O vazio deixado pelo mundo do devir (a perda da meta e da unidade) seria suprido pela crença num mundo verdadeiro, um mundo – segundo Nietzsche – inventado, ficcional. O acontecimento da última e derradeira forma do niilismo se dá, porém, quando o homem enxerga a verdadeira razão da criação de um mundo metafísico: compreende que ela atrela-se a um carecimento psicológico e que, por isso, ele – humano, demasiado humano – foi longe demais. O niilismo, portanto, veta a crença em um mundo verdadeiro, em um mundo metafísico que estaria para além do devir. O devir passa a ser considerado como a única realidade: assim, abre-se o espaço para um sofrimento diante de tal realidade, pois ela é mudança incessante, um fluxo de eventos que se transformam a cada momento em contraposição a uma estabilidade procurada pelo homem. A categoria metafísica de “verdade” não pode mais ser o parâmetro para os eventos do mundo, pois o mundo verdadeiro sofreu, no último golpe do niilismo, sua dissolução: a própria criação de um mundo verdadeiro para além do devir pressupõe a possibilidade de acessá-lo. Nietzsche, porém, nega que tenhamos condições de acessá-lo, pois isso significaria a possibilidade de negar todos os elementos do devir, o que é impossível.

O homem encontra-se, assim, sem rumo, sem solo e sem um além-mundo verdadeiro. A realidade única do devir não pode, porém, ser negada. Desse modo, podemos afirmar que a metafísica sucumbe por não poder calar os elementos do devir. Nietzsche nos alerta para a impossibilidade de as categorias metafísicas ainda determinarem o modo de estruturação do existir antes de qualquer relação, ou seja, a determinação da existência antes da própria existência: o problema não está na verdade em meio à relação, mas sim na instituição de uma verdade anterior e pressuposta, que já carregaria juízos de valor antes mesmo de entrar na dinâmica da própria existência. Essa pressuposição, portanto, diz respeito à incompletude ontológica da realidade em devir (citada acima): segundo ela, o devir não basta por si mesmo – por isso, e necessariamente, ele seria tributário de uma ordem verdadeira. Assim, associá-lo a atributos como “mal” e “falso” tornar-se-ia coerente, mas jamais nos permitiria que nos desvinculássemos de uma atitude hipostasiada, preconceituosa: o devir, dessa forma, foi condenado pelo homem...

Empreendendo uma “filosofia experimental”, Nietzsche retira do mundo as três categorias que o sustentavam. Essa tentativa de pensar o mundo do devir sem determinações metafísicas torna o mundo desprovido de valor, ou pelo menos sem valores predeterminados: valor ou valores através dos quais o homem pautaria todas as suas experiências existenciais. O que o homem agora vê, hipoteticamente, é uma indeterminação originária absoluta, que Nietzsche chamará de caos, que figura “o pior dos mundos possíveis”: aquele mundo que não possui estruturas eternas e imutáveis e que toma o lugar de um mundo ontologicamente insuficiente (tradicionalmente assegurado por categorias metafísicas – onde os jogos de valor se encontravam implícitos: a busca da verdade pressupunha um valor dado à verdade, a crença de que poderíamos alcançá-la e uma desvalorização do devir). Assim, o homem toma consciência de que “a aparição do mundo verdadeiro não provém de uma postura livre e desinteressada em relação ao caminho do conhecimento, mas parte sim de uma condenação do devir como caráter soberano da realidade” [2].

De forma paradoxal, Nietzsche assinala que a causa do niilismo é a crença nas próprias categorias da razão, pois nos fala desse esforço hipotético que é o de pensar na impossibilidade de tais estruturas assegurarem a realidade em fluxo – esse é o seu experimento. O que Nietzsche, assim, nos mostra é que ao invés de nos perguntarmos “o que é a verdade?”, devemos nos perguntar “para que a verdade?”: retirando a crença depositada na própria razão, o homem enxergaria a impossibilidade de fincar suas criações metafísicas em um solo seguro, encarando-as – agora – como perspectivas utilitárias que servem a certos interesses e que, assim, são projetadas no mundo. Nietzsche, em mais uma crítica, exalta que – contudo – essa situação niilista considera o homem como o centro do processo – a medida, o sentido primordial –, pois ainda o considera como aquele que estabelece, como um juiz que delibera e projeta – por vontade livre e própria – o valor no interior de todas as coisas.

A realidade perdeu, a princípio, o seu valor, pois os fundamentos metafísicos que pretendiam assegurá-la passaram a se mostrar como frutos de um carecimento psicológico. O niilismo em sua derradeira forma, porém, é somente um momento intermediário, no qual o homem encontra-se em situação de negação, deparando-se com um vazio de valor: ainda um estágio entre o niilismo e sua superação – Aqui, a vida ainda aparece como desprovida de qualquer sentido, pois ela não pode mais se pautar pelos conceitos de “meta”, “unidade” e “verdade”, assim como o foram compreendidos pela tradição. O homem, dessa maneira, entrega-se à dissolução.

O devir, que passou a ser encarado como única realidade, será, porém, um caminho para a afirmação de um sim perante a vida, mesmo com o esvaziamento de valor causado pela dissolução das categorias até então tidas como absolutas e indubitáveis. Nietzsche buscará, em outras palavras, a possibilidade de reconciliação entre existência plena e devir: em meio à vigência do devir, do aparecimento incessante de novos elementos perante a existência, a vida pode se auto-afirmar e se auto-superar. Entender a dinâmica do devir, portanto, mostra-se como um passo importante para a compreensão desse caráter afirmativo da vida.

A imposição interminável de elementos plurais – o devir – é compreendida como uma transformação incessante, na qual podemos observar uma dinâmica estruturadora que acontece na própria superfície fenomênica: o que Nietzsche vê e descreve é um embate de forças que se impõem e resistem à imposição das demais. O caráter originário de qualquer categoria, assim, é relacional – o problema, até então, foi considerá-las para além de toda e qualquer relação: tal postura – de nos colocarmos para além de toda constelação relacional – nos revelaria uma situação caótica de puras possibilidades dinâmicas de integração e não uma ideia em-si e por-si. Não há, aqui, essencialidade separada da superfície: esse embate originário – o modo como a própria existência se dá – é estruturador e não possui um eu monolítico como determinante. Assim, o próprio eu é um resultado desse embate de forças que nunca se cristalizam, que nunca são previamente dadas e que se incorporam num vetor direcionador, numa força que domina – uma perspectiva estruturadora.

Essa perspectiva estruturadora, que só existe nesse fluxo dinâmico relacional, se caracteriza por sua força de imposição e resistência: em meio à dinâmica relacional e ao surgimento incessante de elementos plurais, a luta entre aqueles que se impõem e resistem jamais tem seu término. Esses embates, que jamais se neutralizam como num movimento dialético, são subjugados por uma única perspectiva que sempre é (de maneira relacional) mais forte do que as outras – essa força, essa perspectiva, é a perspectiva dominante e que, por isso, direciona, a partir de sua determinação própria, os demais elementos que são dados pelo devir. Só pode haver concretização se houver esse embate, no qual uma força em particular desponta como a mais forte e subjuga as demais, submetendo-as ao seu poder de imposição. Chegamos, de maneira resumida, ao que Nietzsche chama de vontade de poder:

Vontade de poder é o nome do modo de realização de todos os acontecimentos da totalidade, uma vez que todos esses acontecimentos surgem através de uma luta entre possibilidades de condução do processo constante de composição das forças em jogo na realidade e que esta luta sempre resulta no aparecimento de uma via imperativa de expansão destas forças sob o domínio interpretativo de uma possibilidade em específico (CASANOVA, 2002, p. 159).

Vida e vontade de poder, nesse sentido, se confundem, pois a própria existência é tributária dessa experiência incessante: descrever a vida – e não apenas conceitualizá-la – é falar dessa dinâmica. A “filosofia experimental” de Nietzsche visa o próprio afrontamento com essa realidade plural, mas no qual a vida deve manter a sua unidade, a sua força direcionadora: uma vida forte, para Nietzsche, é aquela que absorve a pluralidade, sem se diluir, sem se perder – é aquela vida em que se sofre, mas na qual o sofrimento tem o seu lugar de realização. Entretanto, em que sentido a vontade de poder possibilita o empreendimento de uma superação da situação niilista? Talvez tenhamos nos aproximado da resposta a essa pergunta, na medida em que colocamos a vida como o novo fiel da balança – como o novo medidor dos valores. Entretanto, só podemos fazer isso ao encontrar a vontade de poder como fundamento da própria existência, diluindo as ficções metafísicas que pretendiam reger a vida pautando-se por dicotomias, por cisões entre sensível e inteligível, entre aparência e essência, entre fenômeno e númeno, entre não-ser e ser. O existir não consiste numa auto-conservação, mas sim numa incessante apropriação de acontecimentos plurais e dinâmicos: a perspectiva dominante direciona as outras, mas – e ao mesmo tempo – muda ao subjugá-las, pois não há neutralização; uma força, assim, jamais anula outra. Se uma força deixou de ser direcionadora é porque se enfraqueceu e não manteve sua unidade na pluralidade: não podemos, porém, ver nessa “unidade” uma hipostasia, mas sim um elemento que se dá numa relação dinâmica e efetiva de forças ou perspectivas.

O problema da tradição filosófica foi o problema das pressuposições que ela fez, visando calar os elementos plurais da vida, que jamais puderam ser silenciados. O niilismo levado às últimas consequências nos colocou frente a uma apreensão do próprio vazio existencial, mas – da mesma forma –, nos possibilitou a descoberta de um sentido que sempre se deu: a vontade de poder como possibilidade de pensar a partir de uma “nova balança”. Ao mesmo tempo, podemos concluir algo acerca do próprio fundamento dos valores: que a existência de categorias metafísicas – meta, unidade e verdade, por exemplo – se dá de maneira relacional, de modo que não podemos falar de categorias em si mesmas, que estariam para além de toda e qualquer fenomenalidade – essas categorias são verdades inalcançáveis, pois o devir jamais é negado de forma completa. A transvaloração de todos os valores reside nesse novo horizonte: Nietzsche, sendo o primeiro niilista consumado da Europa, nos mostra que, mesmo diante do sentimento de que tudo “foi em vão até agora!”, nós podemos – e temos o direito – de usar uma “nova balança” para medir todos os valores: e esse novo fiel da balança não é nada mais que a própria vida.

BIBLIOGRAFIA:

CASANOVA, Marco Antonio. O ponto máximo de integração ou “o que pode um corpo?”. In: LINS, Daniel e GADELHA, Sylvio – org. – Nietzsche e Deleuze. Que pode o corpo. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará; Fortaleza CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.

NIETZSCHE, F. W. Sobre o niilismo e o eterno retorno. In: Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

*Aforismo “Crítica do niilismo”, tradução de CASANOVA, Marco Antonio. Sem referência.


[1] Graduando em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atualmente no 8º período.

[2] CASANOVA, Marco Antonio. O ponto máximo de integração ou “o que pode o corpo?”, p. 152.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Descartes


DESCARTES

Toda a questão que relaciona a física com a metafísica diz respeito à necessidade de se fundar a ciência em bases que sejam sólidas, seguras e eternas. A crise do modelo científico – da concepção de ciência – abriu espaço para os questionamentos céticos, fazendo com que a possibilidade de um conhecimento verdadeiro do real mergulhasse em grande dúvida. Assim, o combate ao ceticismo será capital, o que desembocará numa busca de princípios sólidos para a construção de uma base segura para uma nova teoria da ciência.

Desse modo, a física não asseguraria, por si só, a certeza acerca de seus próprios princípios e métodos – de forma que à metafísica restariam essas funções: a de buscar uma ciência certa, a de fazer as distinções necessárias (como a de forma e matéria), a de garantir o método e o fundamento como verdadeiros. A busca do esclarecimento de tais pontos e de suas definições possibilitaria fundar os aspectos que assegurariam um conhecimento correspondente ao real e – por isso – verdadeiro. Dessa forma, explicitando também o sujeito cognoscente e o mundo que o mesmo está apto a conhecer, Descartes busca estabelecer a correspondência que o conhecimento elaborado pela física teria com a realidade.

A obrigatoriedade de tal fundamentação torna-se evidente quando buscamos um princípio que justifique os procedimentos e a base de uma ciência particular. A metafísica teria o papel de validar as hipóteses e de discutir, em Descartes, questões que transcendem a própria ciência a ser justificada.

Em sua fundamentação metafísica da ciência, Descartes chegará a Deus como o alicerce que permite a correspondência entre pensamento e realidade exterior ao pensamento, não permitindo que a situação solipsista permaneça como a predominante. Seria preciso demonstrar como as ideias que obedecem ao método e que formulamos acerca da realidade correspondem, de fato, à realidade.

Não dar um princípio claro e distinto para a física seria deixá-la fragilizada diante da dúvida, uma vez que tal ciência pretende conhecer e descrever a primeira das realidades que desaparece e que mostra seu caráter de mudança incessante – que é a realidade física, o devir. Dar uma base segura para a ciência, fundamentalmente, é assegurar a validade de seu método e os princípios que o fundam, explicitando a sua verdade.

Galileu


GALILEU

Galileu, em sua discussão acerca da validade do conhecimento científico, coloca-se contra o argumento de autoridade no que diz respeito ao modo como conhecemos e entendemos a natureza. Com essa postura, Galileu acrescenta ao real certas características que, supostamente, permitiriam ao sujeito cognoscente o acesso a uma realidade oculta não dada de antemão, principalmente ao vulgo.

É importante ressaltar que, por mais que o real possua as características a seguir enumeradas, o valor epistêmico depende, também, de uma postura fundamental daquele que conhece – constitui, assim, uma via de mão dupla na qual o sujeito deve obedecer a certas regras para conhecer verdadeiramente.

O real, a natureza a ser conhecida – porém, nunca esgotada –, necessita possuir certas características que possibilitem uma prática científica segura e rigorosa. Frente à evidência sensível do devir, do aparecimento e desaparecimento dos corpos que a física e a matemática pretendem descrever, Galileu postulará como características intrínsecas ao real, estas expressas pelas leis formuladas no interior de uma lógica matemática e científica.

A natureza, o real, é um livro escrito em caracteres matemáticos: a matemática, por sua vez, expressa as características que permitem que a realidade em fluxo seja conhecida por seu valor de eternidade. Nenhuma lei poderia ser formulada ou conhecida se abríssemos mão dessas características, pois são elas, também, que garantem a reprodutibilidade do conhecimento científico – caráter essencial para todo conhecimento que se pretenda compreensível por uma comunidade científica.

Diante do real, os sentidos humanos devem ser instruídos para que o conhecimento racional ganhe seu devido espaço: a inteligibilidade do real, para além das teorias que construímos acerca do mesmo, é uma realidade afirmada por Galileu e alcançada por experiências sensíveis e demonstrações necessárias. Seu fim – e aqui não podemos adotar o sentido de finalismo, como em Aristóteles – é a quantificação, pois a própria natureza é quantificável na medida em que possui uma estabilidade, uma constância em sua base. A essencialidade da natureza, segundo Galileu, é matemática. Tal essencialismo, assim, nos permite afirmar a possibilidade de um conhecimento regular, de uma descrição do real e da descoberta de suas leis.

Outra característica é o caráter aberto do “livro da natureza”: entretanto, requer-se o conhecimento e a instrumentalização matemática e científica para que seus caracteres possam ser compreendidos. Salientemos, pois, que ele é aberto para qualquer sujeito que queira conhecer e que se instrumentalize, uma vez que as demonstrações, que guiam os homens nesse conhecimento, são universais ou buscam concretizar uma universalidade.

Assim, o real jamais pode ser fechado como um livro qualquer, tendo o direito de ser publicizado, mesmo que se defronte com a autoridade moral ou religiosa. Entretanto, além do real ser inexorável, imutável, eterno, o sujeito da ciência tem que possuir certas características para assumir o projeto científico.