quarta-feira, 7 de julho de 2010

Canguilhem e o conceito


CANGUILHEM E O CONCEITO

De acordo com Georges Canguilhem, o conceito é propulsor de questões, desempenhando um papel capital no progresso científico – que, aqui, não é considerado como necessariamente contínuo – assumindo, assim, uma postura anti-positivista. Dessa maneira, Canguilhem visa superar, na história das ciências, duas posturas clássicas: uma postura que privilegia a lógica científica (internalismo) e outra que privilegia as causas externas (externalismo).

A análise do conceito que permeia o desenvolvimento científico é um movimento capital para o historiador das ciências, pois muito antes de ser algo instituído, o conceito é problematização; ele aponta para questões: “o conceito não é uma palavra, mas uma denominação, uma definição, um nome dotado de um sentido capaz de interpretar as observações e as experiências.” Essa análise, que visa os conceitos operatórios – ou seja, aqueles que fazem a ciência funcionar –, vai muito além de uma simples história das teorias. Tal análise busca as condições nas quais um conceito foi formulado, as relações que mantêm com outros conceitos e que tipos de problema ele pretende solucionar. A perspectiva histórica, por sua vez, ganha importância, uma vez que a atividade científica não é atemporal e está inserida num coletivo, a saber, a comunidade científica. Só existe ciência quando existe diálogo entre seus membros.

“Por sua função de operador na produção do conhecimento científico, é o conceito que garante a eficácia teórica ou o valor cognitivo da ciência, encerrando uma norma operatória ou judicativa que não pode variar sem a retificação de sua compreensão”. Essa retificação está atenta as turbulências atravessadas pela ciência, que é marcada pelo regionalismo, pois cada setor da ciência possui uma especificidade instrumental, metódica, temática – fatores esses que excluem toda postura absoluta, generalizante e que nos fazem analisar a questão a partir de “regiões de cientificidade”. Uma epistemologia histórica, calcada na verificação dos conceitos, é um dos objetivos de Canguilhem, pois se apresenta como um caminho onde uma distinção entre a história dos conhecimentos superados e uma história dos conhecimentos sancionados é possível.

A epistemologia é judicativa. Partindo da última linguagem da ciência, ela julga os conhecimentos anteriores – o que constitui, assim, uma atividade dinâmica porque nunca definitiva. Diante dos abandonos axiomáticos e rupturas da atual ciência, a história se renova. O conceito está aí, pois é ele que possibilita esse julgamento.

O grande erro da tomada do internalismo e do externalismo como pólos absolutos está no fato de que nenhuma das duas perspectivas consegue abarcar o problema quando isoladas uma da outra. O internalismo coloca que não é possível fazer uma história das ciências se não nos situarmos dentro da lógica científica, ou seja, se não conhecermos de fato a linguagem científica da atualidade: os problemas só poderiam ser tratados sob uma perspectiva interna, do ponto de vista da própria ciência. Assumimos, assim, uma postura teórica na construção do objeto dessa história.

Já o externalismo condicionaria essa história aos interesses externos como a economia e a política, por exemplo. A história da ciência somente sofreria reflexos da história civil, caráter que tende a deixar de lado a historicidade própria da ciência, uma vez que ela seria encarada como uma espécie de “superestrutura”, num “marxismo empobrecido”. Aqui, a ciência seria um jogo de interesses. Nos esqueceríamos, porém, de um caráter essencial: a pretensão à verdade – mesmo que não absoluta.

Tal barreira imposta pela dicotomia entre internalismo e externalismo constitui uma problemática a ser superada, pois o conceito situa-se entre os dois pólos. A história das ciências não tem uma relação apenas com a lógica científica e suas querelas, mas com os interesses que a circundam e que, por exemplo, interferem no andamento de certa pesquisa. Nesse ponto central, o conceito recebe ambas as influências, fazendo com que o objeto dessa história – que é o discurso acerca de um objeto não dado e inacabado – sempre se renove. Canguilhem, portanto, coloca-se contra uma perspectiva dogmática e cristalizada do saber, colocando a teoria do conhecimento, a epistemologia e a história das ciências como disciplinas sempre abertas ao diálogo e ao novo.


BIBLIOGRAFIA:

CANGUILHEM, G. O objeto da história das ciências. Tempo Brasileiro, 28, 1972.

PORTOCARRERO, V. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

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