segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Cogito e a Fundamentação da Ciência


O COGITO E A FUNDAMENTAÇÃO DA CIÊNCIA

[...] Só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos, [...] não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conhecer pelo pensamento [...]. (DESCARTES, 1979, p. 98)

Propomos, nesse pequeno trabalho, elucidar o caminho percorrido por Descartes dando ênfase à afirmação da existência da coisa pensante e destacando sua importância como fundamento de todo o conhecimento que, por sua vez, pretende se apoiar em bases sólidas. O conhecimento receberia, assim, o estatuto de cientificidade que garantiria um conhecimento verdadeiro acerca da realidade.

Na meditação primeira temos o momento de suspensão total onde “para combater a força do provável, e para conseguir duvidar, finjo acreditar na existência dum gênio mau que falsearia constantemente os meus pensamentos” [1], mas que se apresenta como capital para a descoberta da primeira certeza – já na meditação segunda –, enunciada em consequência da própria necessidade da dúvida. Através de sua radicalização, que coloca em questão até mesmo as proposições matemáticas – por sua vez representando o conjunto de noções simples, quantificáveis, universais, que se apresentavam como verdadeiras e existentes –, Descartes admite que, para que a dúvida seja possível, deve-se, necessariamente, admitir a existência do sujeito que realiza o ato de duvidar. O filósofo chega ao Cogito e o reconhece como núcleo que resiste à dúvida metafísica, pois mesmo que exista um Deus que o engane, Ele jamais poderia fazer com que o ser enganado fosse reduzido ao nada:

Essa dúvida não teria saída, se Descartes, como os filósofos anteriores, visasse somente a seus objetos, pois todos são objetos de conhecimento, os inteligíveis como os sensíveis. Não se pode, pois, como o prisioneiro de Platão, voltar-se para um mundo de realidades que escapariam à dúvida. Mas considera essa incerteza em si mesma, na medida em que é um pensamento em meu pensamento. Sob esse aspecto, minha dúvida, que é meu pensamento, está unida à existência desse eu que pensa. Não posso perceber que eu penso, sem ver, com certeza, que existo: Cogito, ergo sum. Se eu viesse a duvidar dessa relação, tal dúvida implicaria novamente minha afirmação. A certeza de minha existência como pensamento é a condição de minha dúvida. Assim, Descartes chega a um primeiro juízo de existência, substituindo à vã procura dos objetos a reflexão sobre aquilo mesmo que procura. [2]

A primeira certeza “eu sou, eu existo” – apoiando-se na axiomática “para pensar, é preciso ser”, “o nada não realiza atos” e no princípio de causalidade – resiste, como já dito, a toda dúvida e inaugura a cadeia das razões, mesmo sendo uma certeza que por si só não garanta a existência do mundo exterior. Entretanto, nos dá um tipo exemplar de proposição verdadeira. Dessa primeira verdade, que é existencial, Descartes chegará à determinação essencial do sujeito que realiza o ato de duvidar, descobrindo, “com todo o cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim” [3], que o pensamento é o único atributo que não lhe pode ser retirado, enquanto sujeito do ato de afirmar, negar, desejar e pensar.

Esse segundo passo é tão importante quanto o primeiro, pois dá prosseguimento à ordem das razões e prepara o momento no qual Descartes analisará uma ideia que assegurará a existência do mundo exterior: a ideia de Deus, mas nesse caso, derrubando a hipótese de um Deus Enganador e provando a existência de um Deus Veraz, através do estabelecimento da relação entre a ideia de Deus e o objeto Deus [4]. Mas, por enquanto, a única certeza que tenho (numa perspectiva da primeira pessoa) é que possuo a propriedade de pensar, o que faz do pensamento o atributo essencial da res cogitans. O Cogito exalta a prioridade do autoconhecimento sobre o conhecimento do mundo, ou seja, antes de construir o edifício do conhecimento cabe conhecer o sujeito cognoscente e refletir sobre seus estados de consciência:

Esta primeira certeza não fornece ainda uma refutação do ceticismo, mas apenas um primeiro princípio, um "ponto arquimediano", como afirma Descartes, a partir do qual é preciso avançar. Permanecer neste ponto não proporcionaria o fundamento último da Ciência e condenaria o sujeito a uma posição solipsista, ou seja, o aprisionaria na solidão metafísica de sua consciência individual. Portanto, para superar esta situação é preciso refutar as razões de duvidar partindo do "porto seguro" oferecido pelo Cogito. [5]

A meditação segunda nos traz a ideia de que o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo. A realidade corporal se dispõe, caso não constituísse – nesse momento – uma ilusão, em aspectos tão variáveis que o empreendimento epistemológico necessário seria bem maior se (e quando) visássemos conhecê-la verdadeiramente. A certeza da existência da coisa pensante e a determinação de que o pensamento é seu atributo essencial são as bases seguras – e metafísicas – que, juntamente com as provas da existência de um Deus Veraz que assegura a existência do mundo exterior, permitirão a Descartes seguir adiante em sua fundamentação da nova ciência. A física mecânica, que se impôs à física aristotélica, é quantitativa – é matemática – ao contrário da física anterior, que é qualitativa. Se o conhecimento da matemática não for validado – e se a hipótese do Deus Enganador não for descartada – nos encontraríamos diante de um edifício de conhecimento que não corresponderia a uma realidade externa à coisa pensante. As provas da existência de Deus – sendo aí importantíssima a consciência da solidez da res cogitans – darão início à destruição e reavaliação do procedimento da dúvida [6].

A distinção da alma e do corpo representa o ponto de apoio no qual repousa toda a física de Descartes. E o Cogito é seu sustentáculo. No exemplo do pedaço de cera que sofre transformações diante do fogo, Descartes chega à conclusão de que não seria através da percepção sensível e muito menos da imaginação que conheceríamos o mundo corporal, mas sim “pela única inspeção do espírito”. Assim, a sensação não desempenharia o papel principal no ato de conhecimento, mas sim o entendimento que, por sua vez, “não é determinado do exterior por seus objetos, mas de dentro por sua exigência interna de clareza e distinção” [7].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BATTISTI, César Augusto. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 (Série estudos filosóficos; n. 5)

BEYSSADE, Michelle. Descartes [tradução de Fernanda Figueira]. Lisboa: Edições 70, 1986.

BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tradução Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977.

DESCARTES, René. Meditações; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores).

GLEIZER, Marcos André. “Penso, logo existo": Da fundamentação da Ciência à descoberta da consciência. Disponível em: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESFI/Edicoes/38/artigo147880-4.asp. Acesso em: 24 jun. 2010.


[1] BEYSSADE, Michelle. Descartes [tradução de Fernanda Figueira]. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 35

[2] BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tradução Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 68

[3] DESCARTES, René. Meditações; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores). p. 92

[4] BATTISTI, César Augusto. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 (Série estudos filosóficos; n. 5). p. 377

[5] GLEIZER, Marcos André. “Penso, logo existo": Da fundamentação da Ciência à descoberta da consciência. Disponível em: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESFI/Edicoes/38/artigo147880-4.asp. Acesso em: 24 jun. 2010.

[6] BATTISTI, César Augusto. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 (Série estudos filosóficos; n. 5). p. 278.

[7] BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tradução Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 70.

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