segunda-feira, 7 de junho de 2010

Homo videns


Homo videns: Televisão e pós-pensamento (excertos)

Giovanni Sartori

Atualmente estamos passando por um rapidíssimo processo revolucionário dos meios de comunicação. Um processo com muitos tentáculos (internet, computadores pessoais, espaço cibernético, etc), mas que, basicamente, é caracterizado por um denominador comum: a capacidade de ver à distância – tele-ver – surgindo daí o nosso vídeo viver. E é em consideração deste fenômeno que no nosso livro focalizamos a questão da televisão, constituindo como tese de fundo a afirmação de que o vídeo está transformando o homo sapiens em homo videns no qual a palavra vem sendo destronada pela imagem. Tudo se torna visualizado. Mas, neste caso, o que vai acontecer com as coisas que não são visíveis, que constituem de fato a maior parte da realidade? Assim, enquanto nos preocupamos com os que controlam os meios de comunicação, não nos damos conta de que escapou do nosso controle o próprio instrumento em si.

Muitos se queixam da televisão achando que está incentivando a violência, que está informando pouco e mal, ou até mesmo acusando-a de ser causa de retrocesso (...) Isso é verdade. Todavia, é ainda mais verdadeiro e ainda mais importante entender que a televisão está mudando a natureza do ser humano. É este o aspecto essencial, aliás essencialíssimo, que até hoje escapou da atenção da maioria das pessoas. Entretanto, é bastante evidente que o mundo em que vivemos já está se apoiando nos ombros da “geração-televisiva”: uma espécie recentíssima de ser humano criado pela tele-visão – diante de um televisor – antes mesmo de saber ler e escrever.

Por isso, (...) vou tratar e me preocupar com a primazia da imagem, isto é, com uma espécie de predomínio do visível sobre o inteligível que conduz para um ver sem entender. E é sobre esta premissa fundamental que pretendo examinar a vídeo-política, quer dizer, o poder político da televisão (...)

Homo sapiens: quem primeiro usou esta expressão para classificar a espécie humana foi Lineu na sua obra Sistema da Natureza, dada a público em 1758. Do ponto de vista fisiológico o homo sapiens não tem nada que o torne único entre os primatas, que constituem o gênero do qual a raça humana é espécie. O que torna o homo sapiens único é a sua capacidade simbólica; com efeito, foi este aspecto que induziu Ernst Cassirer a definir o ser humano um “animal simbólico”. Cassirer explica isso da seguinte forma:

O homem não vive dentro de um universo puramente físico, mas sim em um universo simbólico. Língua, mito, arte e religião (...) são os vários fios que compõem o tecido simbólico (...). Qualquer progresso humano no pensamento e na experiência fortalece esse tecido (...). A definição do homem como animal racional não perdeu nada do seu valor (...), mas é fácil perceber que tal definição é uma parte de um todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há uma linguagem do sentimento, lado a lado com a linguagem lógica ou científica existe a linguagem da imaginação poética. De início a linguagem não exprime pensamentos ou ideias, mas sentimentos e afetos.

Por conseguinte, a expressão animal symbolicum abrange todas as formas de vida cultural do homem. E a capacidade simbólica dos seres humanos se desdobra na linguagem, na capacidade de comunicar por meio de uma articulação de sons e signos “significantes”, providos de significado. Daí podemos dizer também que o homem é um animal que fala, um animal loquax “constantemente em diálogo consigo mesmo” (Cassirer), aliás pode-se dizer que esta é a característica que o distingue de qualquer outra espécie de ser vivo.

Alguém pode retrucar que também os animais se comunicam por meio de uma linguagem própria. Em certo aspecto, isso é verdade, mas, no seu conjunto, a realidade não se apresenta deste modo. A assim chamada linguagem animal só transmite sinais. E a diferença absolutamente fundamental é que o ser humano possui uma linguagem capaz de raciocinar a respeito de si próprio. O homem reflete sobre o que diz. E não apenas a comunicação, mas também o pensamento e o conhecimento que caracterizam o homem como animal simbólico são construídos em forma de linguagem e pela linguagem. A linguagem não é só um instrumento para ele se comunicar, mas também para pensar. E para pensar não é necessário ver. De fato, (...) um cego (...) mesmo não podendo ver as coisas, é capaz de pensar. Na realidade, sendo as coisas que pensamos “invisíveis”, nem mesmo quem enxerga pode vê-las (...)

A televisão – como o próprio nome diz – consiste em “ver de longe” (tele), e portanto, levar à presença de um público de espectadores coisas para ver, quer dizer, visualmente transmitidas de qualquer parte, de qualquer lugar e distância. E na televisão o fato de ver predomina sobre o falar, no sentido que a voz ao vivo, ou de um locutor, é secundária, pois está em função da imagem e comenta a imagem. É por causa disso que o telespectador passa a ser mais um animal vidente do que um animal simbólico. Para ele as coisas representadas por meio de imagens passam a contar e pesar mais do que as coisas ditas por palavras. Esse fato constitui realmente uma virada radical de direção, pois enquanto a capacidade simbólica distancia o homo sapiens do animal, o predomínio da visão o aproxima de novo às suas capacidades ancestrais, isto é, ao gênero do qual o homo sapiens é espécie (...)

Até o advento da televisão, em meados do nosso século XX, a capacidade visual do homem se desenvolvera em duas direções: sabíamos, por um lado, ampliar o pequeno (por meio do microscópio) e, por outro, aumentamos nossa capacidade para ver de longe (binóculos e mais ainda com o telescópio). A televisão, porém, oferece-nos a possibilidade de ver tudo sem necessidade de irmos aos objetos (...)

É justamente a televisão que, antes de mais nada, vai modificar, e essencialmente, a própria natureza da comunicação, deslocando-a do contexto da palavra (impressa ou transmitida por rádio) para o contexto da imagem. A diferença é radical. A palavra é um “símbolo” (...) e leva alguém a compreender somente quando for entendida, quer dizer, quando conhecemos a língua a que pertence, do contrário é letra morta, um sinal ou som qualquer. Ao contrário, a imagem é pura e simples representação visual. Assim para entender a imagem, é suficiente vê-la; e para ver basta a visão, é suficiente não ser cego. De fato não se vê a imagem em chinês, árabe ou inglês. Repito: é só vê-la e basta. Enquanto a palavra é parte integrante e constitutiva de um universo simbólico, a imagem não é nada disso. É óbvio, então, que o caso da televisão não pode ser tratado por analogia, isto é, como se a televisão fosse uma continuação e uma mera ampliação dos instrumentos de comunicação que a precederam. Através da televisão nos aventuramos em uma realidade radicalmente nova. Por isso a televisão não é um acréscimo, mas, antes de mais nada, uma substituição que derruba a relação entre o ver e o entender. Antes da televisão tomávamos conhecimento do mundo e de seus acontecimentos mediante a narração oral e escrita; hoje podemos vê-los com os nossos olhos, e a narração – ou a sua explicação – é quase apenas em função das imagens que aparecem no vídeo.

Mas se isto é verdade, então decorre que a televisão está produzindo uma espécie de permutação, uma metamorfose, que atinge a própria natureza do homo sapiens. É por isso que a televisão não é só um instrumento de comunicação; é ao mesmo tempo também uma paideia[1], um instrumento “antropogenético”, um meio que gera um novo anthropos, um novo tipo de ser humano (...) tese que se fundamenta sobre o fato consumado de que nossas crianças ficam olhando a televisão, horas a fio, antes mesmo de aprenderem a ler e a escrever (...)

A alegação de que uma criança abaixo dos três anos de idade não compreende aquilo que está vendo não se justifica, pois é certamente verdade que “absorve” com maior intensidade a violência como um modelo excitante e, quem sabe, vencedor na vida adulta. Mas por que limitar o problema à violência? A verdade maior e mais abrangente é que a primeira escola da criança (a escola divertida que precede a escola enfadonha) é a televisão, é um animal simbólico que recebe o seu imprint, o seu molde formativo, de um mundo feito de imagens, totalmente centralizado no ver. Nesta paideia, a predisposição à violência (...) é apenas um gomo do problema. Na verdade, o problema de fundo é que a televisão criou e está criando um homem que não lê, que revela um alarmante entorpecimento mental, um “moloide criado pelo vídeo”, um viciado na vida dos videogames. “No começo era a palavra”: diz o Evangelho de João. Hoje, porém, poder-se-ia dizer que “no começo está a imagem”. E mediante a imagem que transpõe a palavra se instala uma cultura juvenil descrita com muito acerto por Alberoni (1997):

Os jovens caminham no mundo adulto da escola, do estado (...) da profissão como clandestinos. Na escola ouvem preguiçosamente lições (...) que rapidamente esquecem. Não leem os jornais (...) Ficam trancados no próprio quarto junto com os pôsteres dos seus herois, olham os próprios programas, andam pela rua mergulhados na sua música preferida. Despertam novamente só quando, de noite, encontram-se na discoteca. Finalmente, quando saboreiam a ebridade de estarem juntos, experimentam a satisfação de existir como um único coletivo dançante.

Não saberia como representar melhor a geração-TV, isto é, uma criança criada pela televisão. Será que tal criança nunca fica adulta? Forçosamente, e de algum modo, é claro que sim. Mas, mesmo assim, tratar-se-á sempre de um adulto que continua surdo, durante a vida, aos estímulos da leitura e do saber transmitidos pela cultura escrita. Os estímulos a que continua respondendo, quando adulto, são quase que exclusivamente audiovisuais. Por conseguinte, a geração-TV não tem como crescer mais que isso (...)

A mensagem com que a nova cultura se recomenda e auto-elogia é que a cultura do livro pertence a poucos (é elitista), ao passo que a cultura audiovisual pertence a muitos. Mas o número dos usuários – poucos ou muitos – não modifica a natureza e o valor de uma cultura. E se o preço de uma cultura para todos é a desqualificação em uma sub-cultura que, afinal – de um ponto de vista qualitativo -, é “não-cultura” (ignorância cultural), então a operação resulta apenas em uma perda.

(...) O homo sapiens deve seu saber à capacidade de abstração. As palavras que articulam a linguagem humana são símbolos que evocam também “representações”, isto é, evocam na mente configurações, imagens de coisas visíveis. Mas isso acontece somente com os nomes próprios e com as “palavras concretas” – tais como: casa, cama, mesa e semelhantes (...) Quanto ao resto, quase todo o nosso vocabulário cognitivo e teórico consiste em palavras abstratas que não têm correspondência exata com as coisas visíveis, e cujo significado não pode ser referido nem traduzido em imagens. Assim, por exemplo, a palavra cidade corresponde a algo ainda visível, mas nação, Estado, povo, soberano, burocracia (...) não representam nada visual, são conceitos abstratos, elaborados por processos mentais dedutivos, que representam entidades mentalmente construídas. E todo o nosso controle da natureza, como também toda a nossa capacidade de gerir o habitat político-econômico em que vivemos tem seu eixo exclusivo em um pensar mediante conceitos que são entidades invisíveis. (...)

Em suma, e sintetizando: (...) o saber do homo sapiens se desenvolve na dimensão de um mundo intelligibilis (de conceitos) que não é de modo algum o mundus sensibilis, o mundo percebido pelos nossos sentidos. Por isso a questão consiste no fato de que a televisão inverte o progredir do sensível ao inteligível, virando-o num piscar de olhos para um retorno ao puro e simples ver. Na verdade a televisão produz imagens e apaga conceitos (...) e desse modo atrofia nossa capacidade de abstração e com ela nossa capacidade de compreender (...) É justamente este o processo que vem sendo atrofiado quando o homo sapiens é suplantado pelo homo videns. (...)

O advento da televisão e, em seguida, da tecnologia dos multimídia é realmente um fato inevitável. Todavia, se ocorre algo inevitável nem por isso se deve aceitá-lo cegamente (...) Ninguém pode deter o progresso tecnológico, mas nem por isso devemos deixá-lo escapar do nosso controle e submeter-nos servilmente à rendição.

SARTORI, Giovanni; Homo videns: televisão e pós-pensamento, S.P, Edusc, 2001.


[1] Paideia: Palavra grega derivada de paidós = menino, menina, infantil e que significa formação, educação; daí a palavra pedagogia.

Um comentário:

Francisco e Suas Ideias disse...

Considero o pensamento de Sartori pertinente no que se refere à dificuldade de compreensão das pessoas que ficam à mercê da televisão, no entanto vejo um certo extremismo afirmar que a TV está transformando a natureza humana, o que não impede usá-lo como referência em alguns trabalhos; vejo nisso tudo a possibilidade de novas discussões, sobretudo se levarmos em conta a visão kantiana de conhecimento, em que sensível e inteligível não são apresentadas como conceitos opostos, ao contrário de Giovanni Sartori, que afirmna o primeiro pode anular o segundo.