terça-feira, 29 de junho de 2010

A Abertura Pela Arte


A ABERTURA PELA ARTE

If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is: infinite.[1]

William Blake

Henri Bergson tematizou a arte sob o viés da intuição e da duração. A intuição representa um problema notável na história da filosofia, pois se coloca como uma apreensão da totalidade, sem mediação alguma – e sem a necessidade da análise, que é método da inteligência. A duração, noção central na obra do filósofo, é devir – pura mudança qualitativa incessante – mas que, por sua vez, é ofuscada pela necessidade de ação.

Como que um “veu” colocado entre nós e o devir, a inteligência – que é capital para o avanço da ciência, com seu método fragmentário – sufocou a percepção e a tornou útil. Nisso que a tornou útil, a tornou utilitária. E quando somos utilitários não percebemos a realidade concreta, pois selecionamos aquilo que é do nosso interesse prático e abandonamos aquilo que é “inútil”: agimos de acordo com o espaço geometrizado, calcando-nos numa percepção sólida. A questão do movimento – estudado pelos procedimentos científicos – ilustra fielmente esse problema central na filosofia bergsoniana:

Bergson mostrou que o estudo científico do movimento, dando o primeiro lugar aos métodos de referência espacial, conduzia à geometrização de todos os fenômenos do movimento, sem nunca tocar diretamente o poder de devir manifestado pelo movimento. O movimento, examinado objetivamente, como o faz a mecânica, já não é mais que o transporte no espaço de um objeto que não muda. [...] Bergson mostrou, em várias ocasiões, que a mecânica – na verdade, a mecânica clássica – não nos dava dos mais diversos fenômenos senão traçados lineares, linhas inertes, sempre percebidas em seu acabamento, nunca verdadeiramente vividas em seu desenvolvimento circunstancial, a fortiori nunca apreendidas em sua produtividade.[2]

O presente trabalho visa elucidar a função que a arte pode desempenhar numa espécie de abertura da percepção humana, resultando numa apreensão de um todo não captado pelos procedimentos analíticos de uma inteligência que apenas o considera como “a soma das partes”. A intuição, oposta à análise, e capital para a experiência artística – que é experiência concreta – nos dá uma realidade única e muitas vezes inexprimível em caracteres racionais. A intuição nos dá aquilo que o objeto possui em sua singularidade e não um universo relacional matematizado. Num primeiro momento, partiremos da distinção de duas noções de memória – a memória-hábito e a memória-recordação – para relacioná-las com a liberdade; depois, sabendo que ser livre somente é possível no segundo tipo de memória, iremos tematizar em que circunstâncias o objeto da arte é objeto da arte enquanto tal, ou seja, em que momento a experiência artística – que é livre – se traduz numa experiência concreta.

“O mecanismo cerebral é feito para recalcar a quase totalidade do passado no inconsciente e introduzir na consciência apenas aquilo que é de natureza a iluminar a situação presente, a ajudar a ação que se prepara, a resultar, enfim, num trabalho útil” [3]: é assim que se dá a memória-hábito. Ela é inteligente por excelência, pois funciona a partir de uma repetição que reabilita experiências passadas – como, por exemplo, a locomoção, a fala, etc. É indispensável a nossa vida, mas possui um caráter mecânico, não nos aproximando criticamente dos movimentos realizados: aqui nos encontramos no campo da necessidade, não no da necessidade lógica, mas no da própria vida que se desenvolve. Entretanto, em meio aos atos mecânicos nós percebemos que algo continua a subsistir: nós percebemos que algo “nos persegue”. E esse algo é nosso passado: “sem dúvida, pensamos apenas com uma pequena parte de nosso passado; mas é com nosso passado inteiro, inclusive nossa curvatura de alma original, que desejamos, queremos, agimos” [4].

A memória-recordação ganha papel de destaque, pois é aquela que reproduz o passado enquanto passado e que o revive – sem, contudo, visar uma utilidade nessa retomada. A inutilidade de tal memória é essencial, pois esse é o ponto que a diferencia da memória-hábito. A memória-recordação guarda todos os acontecimentos da vida sob a forma de imagens-lembranças, onde tudo está registrado com todas suas circunstâncias únicas, com todo o nosso eu, que é fluidez contínua. Entramos em contato, aqui, com o eu profundo que se contrapõe ao eu superficial da inteligência. O eu da memória verdadeira é aquele que intui, que é livre e criador:

A intuição subsiste sempre, embora vaga e descontínua, semelhante a uma lâmpada quase apagada que se reavive só de vez em quando por breves instantes. [...] Ela consegue projetar uma luz mais ou menos débil sobre a nossa liberdade, sobre o lugar que ocupamos no universo, sobre a nossa origem e, talvez, até sobre o nosso destino, quebrando assim a escuridão em que a inteligência nos deixa. [5]

A liberdade não estaria no eu de superfície, no eu mecânico, mas sim no eu profundo que condensa toda a sua personalidade – todas as suas imagens – de maneira dinâmica: esse é o eu “que quer, que se apaixona, que amadurece, que evolui, que cresce sem cessar, que é puro dinamismo e constitui a verdadeira personalidade do indivíduo” [6]. Estamos diante, propriamente – e no que concerne ao indivíduo –, do campo da arte: o campo da profundidade, da liberdade, da criação, da duração – da qualidade. Os deterministas da matéria quiseram, em vão, estender seu princípio para o plano da consciência, tentando quantificar algo que é criação contínua e que pode assumir todas as direções imagináveis: não podemos aplicar tais quadros deterministas na consciência, pois ela é liberdade e possibilidade.

Para Bergson, o artista é aquele que se desligou da utilidade – um “distraído” – mesmo que não completamente. Pelo fato de não contemplar o mundo com um olhar utilitário, a sua visão vai além do comum: ela retira o “veu” que antes fragmentava a realidade em partes mecânicas que se justapunham. Essa nova visão é a própria experiência da abertura. Abertura para o novo, para a criação, para o riso. Pergunta Bergson: “o que visa a arte, a não ser nos mostrar, na natureza e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não impressionavam nossos sentidos e nossa consciência?” [7]. O artista é aquele que cria tornando sensível, que nos impacta de imediato e sem abstração – que fixa na tela, na música, no palco, no livro – fugindo dos símbolos impostos pela inteligência científica. Pelo próprio fato de ser mais desprendido da realidade, o artista consegue ver nela coisas que já não vemos mais:

Isso seria incompreensível, caso a visão que temos ordinariamente dos objetos exteriores e de nós mesmos não fosse uma visão que nosso apego à realidade, nossa necessidade de viver e de agir, nos levou a estreitar e a esvaziar. De fato, não seria difícil mostrar que, quanto mais estamos preocupados em viver, tanto menos estamos inclinados a contemplar, e que as necessidades da ação tendem a limitar o campo da visão. [8]

A arte se constitui, então, como uma visão mais direta da realidade, uma vez que visa apreender o que certo objeto possui de único, de singular. Assim, a arte “impõe-se” contra a criação de rótulos, de modelos prontos e acabados e visa apreender o que a coisa é, em sua duração, em sua concretude: ela abre as “portas da percepção”, pois nega a memória-hábito, mergulha na memória-recordação e nos lança para o futuro. A mais alta ambição da arte é revelar-nos a natureza. [9]

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento [tradução de Antonio de Pádua Danesi]; 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e conferência [Tradução Bento Prado Neto]. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 1979.

BERGSON, H. A evolução criadora [tradução de Bento Prado Neto]. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade [tradução de Ivone Castilho Benedetti]; 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GALEFFI, R. Presença de Bergson. Bahia: Publicações da Universidade da Bahia, 1961.


[1] “Se as portas da percepção fossem limpas, tudo apareceria ao homem como realmente é: infinito”. William Blake em “The Marriage of Heaven and Hell”.

[2] BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 263-264.

[3] BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 5

[4] Id. Ibid. p. 6.

[5] GALEFFI, R. Presença de Bergson. Bahia: Publicações da Universidade da Bahia, 1961. p. 44.

[6] Os pensadores: Bergson. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. XIV.

[7] BERGSON, H. A percepção da mudança. In: O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes: 2006. p. 155.

[8] Id. Ibid. p. 157.

[9] BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 116.

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