Mephisto
(Alemanha Ocidental/ Hungria/ Áustria – 1981 – 144min - Direção: István Szabó - Produção: Manfred Durniok)
Sinopse: Hendrik Höfgen é um ator alemão com ideais comunistas, convicto da função que o teatro desempenha na sociedade, uma vez que está imbuído de elementos que chocam e mobilizam as massas em direção a um caminho revolucionário. O teatro mesmo é visto como revolucionário, pois pretenderia, na visão do ator, ser um “teatro total”, onde o público participaria ativamente. Entretanto, o ator – que mais tarde fará fama em Berlim –, verá a ascensão do nazismo e de seus medos e com isso toda a destruição de um caráter em prol do sucesso particular. Deixa de lado, assim, seus sonhos bolchevistas para renovar a cultura alemã através de sua grande máscara: Mefistófeles.
1- Comentários Gerais:
Hendrik Höfgen tem uma vida de impasses. Quer mudar o mundo e quer ser o melhor no que faz. Esses objetivos são, a princípio, conciliáveis; porém, com a ascensão do nazismo, na Alemanha da primeira metade do século XX, tal sonho torna-se irrealizável. Ou ele tentaria mudar o mundo (sofrendo as consequências, a tortura e a morte), ou ele se adequaria ao sistema (e ascenderia socialmente, bem como artisticamente). Hendrik escolheu a segunda opção. E mesmo fugindo das consequências da primeira escolha, surpreendentemente, Hendrik caiu nas mesmas. Se por um lado ele conquistou a riqueza e o reconhecimento, por outro já não era ele que estava lá. Na verdade foi o outro de Hendrik que ascendeu, decretando assim a “morte” de nosso protagonista, uma morte lenta e dolorosa.
O ator provinciano, que – em Berlim – se torna um símbolo para sua geração, se esconde atrás de uma personagem da cultura alemã: Mefistófeles, aquele que concede proteção a Fausto – uma das grandes personagens alemães – na sua busca pela glória. Hendrik se torna tão notável que sua máscara, Mephistófeles – aquele que o gloriou –, passa a ser o próprio centro de sua vida. O seu passado passa a ser encarado como uma grande tolice, abandono que pouco a pouco se torna mais notável, pelo medo que o tomou e que, acima de tudo, o recompensou.
Cabe fazer, aqui, uma breve comparação entre Hendrik e Fausto, pois – apesar de interpretar Mefistófeles, de se esconder sob essa máscara e de confiar sua vida a sua personagem – Hendrik é que é, na verdade, o verdadeiro Fausto: aquele que se encontra entre a glória e a ruína.
Goethe – cuja versão de Fausto se tornou a mais conhecida e respeitada – deu vida nova a um desses grandes mitos alemães. Tal figura continuava, contudo, sendo um enigma ímpar, pois “onde quer que se apresentasse, [Fausto] tornava-se logo o centro das atenções. [...] Ele próprio atribuía-se o título de ‘filósofo-mor entre os filósofos’ a dava-se ares de um semi-deus. Jactava-se de poder reanimar os mortos, dizia-se médico, praticava a astrologia, era vidente, profeta e quiromante”[1].
Fausto, porém, não satisfeito com tudo o que já possuía, desejou incessantemente mais: ele desejou a glória, a totalidade. Hendrik se encontra numa mesma busca, pois ao ascender deseja ascender cada vez mais. E assim como Fausto – “que teria realmente sido envolvido por maquinações políticas e seria também sempre desiludido por Mefistófeles, que se propõe a desfigurar maliciosamente os seus ideais e trair as suas esperanças” [2] –, Hendrik encontra seu Mefistófeles – ou seja, o general – que o protege, que o eleva, mas que está disposto a esmagá-lo como um inseto caso a ator se atreva a ir além de seus limites. Hendrik Höfgen abdica de sua liberdade para ser amado; não por uma mulher, mas pela sociedade, pelo regime nazista, pelo poder.
De imediato Hendrik escolhe permanecer na Alemanha, mesmo com a ascensão do nazismo. Para ele, o teatro jamais desapareceria, independentemente do rumo que o país levasse: ser ator, para ele, asseguraria sempre um espaço seguro, por mais que as evidências apontassem para o contrário. Acima de tudo, ser ator é considerado como um pleno exercício da liberdade, muito mais do que um simples ofício. Hendrik, porém, ainda conseguiu se persuadir, imaginando que o contexto representava apenas um momento, e que logo os nazistas deixariam o poder. A língua alemã era mais importante – e seu lugar no teatro, portanto, não poderia ser deixado.
Hendrik Höfgen vive num universo sufocado. De um lado um brilhante ator e, de outro, alguém que só se preocupa com o amor próprio, chegando mesmo a admitir que “sim, eu era muito talentoso, mas muito covarde”. Um covarde que tinha consciência do papel que a arte desempenha no mundo, a saber: o motor que pode mobilizar as massas em prol de algum ideal nobre, pois o ator encoraja, ele é o exemplo. Sua função é a de mobilizar. Entretanto, Hendrik, no momento final de seu desespero diz: “O querem de mim? O que? Só sou um ator”. Diante de sua ruína, de sua morte – mesmo que uma morte metafórica – Hendrik toma consciência de seu lugar – ou daquele lugar do qual nunca deveria ter saído.
Hendrik – aquele que abdicou de si – e Fausto – o heroi trágico, velho e cego. Fausto representa (e aqui, fazemos alusão a Hendrik) “o sonho do ser humano em querer decidir livremente sobre o seu destino. Uma utopia, mas ao mesmo tempo a ilusão mais válida do homem a seu respeito, ideal insuperável de qualquer época e lugar!” [3]. Cabe ressaltar ainda uma questão, porém deixando em aberto: há intérpretes que admitem a hipótese de que Fausto fez a aposta – ou seja, se aliou a Mefistófeles – com o intuito de perdê-la. Transposta para o filme “Mephisto”, tal hipótese certamente nos levaria a questões sem fim.
“Da sabedoria é conclusão superior:
Faz jus à liberdade e à sua existência
Só quem diariamente a conquistar com destemor.
Cercado de perigos é assim a vivência
Dessas crianças, adultos e velhos a se agitar.
Gostaria eu de tal multidão vislumbrar
E conviver com homens livres em terra livre
Para poder dizer ao momento fugaz:
Continua aqui. És belo! Não te vás!
Os vestígios de meus dias, na Terra passados,
Nem em milênios poderão ser apagados.”
(FAUSTO - Versos 11574-11584)
2- Filosofia e Política:
Cabe elucidar, em última análise, a papel eminentemente político que a arte e a filosofia desempenham na formação da sociedade. Abrir um tópico para tal discussão, mesmo que restem mais perguntas do que respostas, representa um âmbito essencial na filosofia: o campo das problematizações.
A arte teatral é tratada como um meio para a divulgação de ideologias, o que contraria um sentido clássico no qual visaríamos somente contemplar, atingir a beleza ou participar de uma experiência estética. Colocamos, então, as seguintes questões: pode a arte estar desvinculada da política? Pode a arte não passar visões de mundo? Existe arte neutra?
Talvez encontremos possíveis respostas ao longo do filme. Nos deteremos em dois aspectos. O primeiro, já comentado no tópico anterior, mostra como o nazismo se utilizou de Hendrik, grosso modo, como uma espécie de “garoto propaganda”, onde seu trabalho, aliado aos interesses políticos de uma “raça pura”, renovou a arte de sua pátria, criando uma base cultural para a ascensão do regime vigente.
O segundo ponto a destacar, também já comentado – e que não é propriamente dissociado do primeiro –, exalta o fato de que Hendrik tem plena consciência de sua influência política – de seu papel exemplar –, mesmo que tenda a considerar o artista como alguém que está acima do ser humano comum. Afirma em determinado momento: “Nós, artistas, temos que estar acima de tudo o que acontece no mundo; somos um exemplo e encorajamos os outros; não importa que sujeira haja no mundo; a verdadeira arte sempre será pura e verdadeira”.
O campo da arte é o campo da verdade e, para Hendrik, ela ditaria os parâmetros; e ele – o artista – seria o exemplo: cabe àquele que utiliza sua máscara fazer um bom ou mau uso dela, para si e para os outros.
Na aurora do século XXI, temos a incontestável ascensão da indústria cultural, que mudou drasticamente a maneira com que as pessoas se relacionam com os “objetos de arte”. Vale exaltar também os valores que nos bombardeiam através de tal indústria, de seus meios, de suas músicas, de seus filmes e de suas dramatizações diárias. Nesse sentido, seria de grande valor um estudo aprofundado sobre a relação entre indústria cultural, ideologia e política inserida numa questão mais fundamental; a saber: o que é arte?
Referências bibliográficas:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto [Tradução de Jenny Klabin Segall; prefácios de Erwin Theodor e Antônio Houaiss; posfácio de Sérgio Buarque de Holanda]. – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981. (Grandes obras da cultura universal; v. 3)