sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

EM BUSCA DO SUJEITO MORAL DA AÇÃO


O COMBATE DA CASTIDADE, A CULTURA DE SI E AS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO: EM BUSCA DO SUJEITO MORAL DA AÇÃO

“Os movimentos contraditórios da alma, muito mais que os próprios atos em sua efetivação, é que serão, nessas condições, matéria da prática moral” [1]

Michel Foucault, na obra História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres, redireciona o foco de sua pesquisa, ao anunciar que não busca agora fazer uma história das representações e uma genealogia dos comportamentos, guinada esta que representa um novo rumo depois do primeiro volume de sua História da Sexualidade. Foucault pretende fazer uma experiência do pensamento em ética contemporânea, fazendo um recuo e um estudo das formas de subjetivação clássica – seguindo também as posteriores morais e modos de subjetivação -, que trataria do homem do desejo. O bem exaltado pertence ao homem e é inalienável: a capacidade de autoconstituição que, mesmo diante de estruturas determinantes e institucionalizadas, representa novas possibilidades e também um pensamento diferenciado.

Para Foucault, o termo “sexualidade” (criado no início do séc.XIX) “não marca a brusca emergência daquilo a que se refere” [2], pois foi apropriado por diversos campos do saber, desde o religioso, científico e jurídico ou, antes disso, se ramificou em diversos campos do saber. Ao invés de remeter ao seu significado, tratava-se de uma experiência de reconhecimento enquanto sujeito desejante através de regras e coerções. “O projeto era o de uma história da sexualidade enquanto experiência (correlação entre campos do saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade).” [3] Colocam-se em questão as tão aceitas teorias acerca do desejo e de seu sujeito. Foucault não faz uma hermenêutica, mas sim um estudo histórico das hermenêuticas que decifravam, a partir do desejo, a verdade do sujeito, ou seja, o seu ser. Tal genealogia faz um recuo histórico de pensamento para trazer algo que mude o olhar que temos em relação ao presente. Para isso surge a pergunta: “como o homem se reconheceu como sujeito do desejo ao longo da história?”

O presente trabalho pretende, de maneira introdutória, perpassar “O Combate da Castidade” e “A Cultura de Si”, explicitando os quatro aspectos das formas de subjetivação expostas na introdução a “O Uso dos Prazeres”. Tentaremos mostrar como a questão da castidade, que aqui representa o domínio máximo de si - buscando abranger também o onírico, ou seja, atingir um estado de pureza que seria atestado até mesmo durante o sono -, torna-se dependente do desenvolvimento de técnicas de si e que, uma vez a pureza atingida, as próprias técnicas se aperfeiçoariam enquanto na busca de um sujeito moral da ação. É importante salientar também que tal sujeito não é um mero agente que obedece ao código de uma sociedade, mas aquele que se conduz refletindo sobre o mesmo e seguindo-o, ou não, segundo uma análise das maneiras pelas quais um preceito ou lei deve ser seguido: “existem diferentes maneiras de ‘se conduzir’ moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação.” [4] Assim, a moral também pode ser compreendida como “a maneira pela qual os indivíduos se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta.” [5]

Dentre os vários aspectos levantados por Foucault no que diz respeito à sexualidade encontra-se o forte laço que o Ocidente construiu entre esta e a verdade, isso porque a questão da sexualidade sempre envolveu a questão da pureza. Em “O Combate da Castidade”, Foucault atestará o privilégio ontológico que concedemos ao vício da fornicação, principalmente por uma ascética (como a dos monges) que busca uma via de purificação, lutando contra os vícios da carne como condição para o acesso à verdade. Partindo da análise das Conferências de Cassiano, gula e fornicação são colocadas lado a lado. A primeira, porém, liga-se a necessidades que, se não supridas, podem prejudicar ou destruir o próprio indivíduo; já a fornicação não, pois segundo Cassiano - citado por Foucault -, embora seja algo natural, lutar contra ela é o mesmo que lutar, na esfera da alma, contra a avareza ou o orgulho, e, uma vez eliminada, concederia ao sujeito uma vida que não seria deste mundo, ou seja, liberta da carne:

É a este além da natureza, na existência terrestre, que a luta contra a fornicação nos dá acesso. Ela nos “arranca da lama terrestre”. Ela nos faz viver neste mundo uma vida que não é deste mundo. Por ser radical, é esta mortificação que nos traz, já neste mundo, a mais alta promessa [...] Vemos portanto como a fornicação, ao mesmo tempo em que é um dos oito elementos do quadro dos vícios, se encontra em relação aos outros numa situação especial: à testa do encadeamento causal, no princípio do recomeço das quedas e do combate, em um dos pontos mais difíceis e mais decisivos do combate ascético. [6]

Convém lembrar que, segundo tal relação causal, derrubar um vício precedente significa ganhar maiores chances de vencer um vício posterior. Vencer os vícios – e, consequentemente, desenvolver as virtudes -, por sua vez, é considerado um trabalho ético. Isso implica uma lógica que colocará a castidade como centro de toda uma questão, mas para isso deve-se ter um alto controle sobre si mesmo, pois tal exercício demandaria o desenvolvimento de técnicas refletidas - e severas - que voltariam a atenção do sujeito para ele mesmo. A fornicação da qual trata Cassiano não é aquela na qual há o encontro de corpos, mas sim no nível de uma vontade, da fantasia e do sonho: no plano do pensamento. A ascese começaria pela tentativa de abandono dos movimentos do corpo; depois passaria pela luta contra a implicação imaginativa – ou seja, o asceta não poderia se deter ao conteúdo de seu espírito -; seguindo adiante, os movimentos do corpo teriam que ser realmente abandonados e as representações acerca do objeto de desejo, eliminadas. Por último, teríamos a eliminação da polução noturna, como símbolo máximo de pureza e indício de que o corpo não mais necessitaria de tal vício, garantindo, assim, a pureza ritual.

Ao longo do processo, toda uma luta contra a vontade e suas imagens foi necessária e, portanto, o monge estaria atento à distinção dos atos voluntários e dos atos involuntários, exercendo um controle sobre esses últimos. Segundo Foucault em “A Cultura de Si” [7], exige-se mais austeridade daqueles indivíduos que queiram levar outra vida que não aquela “dos mais numerosos”: a base não é a submissão ao código, mas uma intensificação na relação que se tem consigo mesmo. Assim, o sujeito se constituiria como sujeito moral de suas ações.

Convém enumerar, por fim, a especificação dos quatro modos de subjetivação, os quais Foucault explicita na introdução de sua História da Sexualidade 2, sendo estes os diferentes modos ou maneiras de “se conduzir” diante de um preceito, lei ou código dado:

A determinação da substância ética é a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral [...]. O modo de sujeição é a maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática [...]. Existem também diferenças possíveis nas formas da elaboração do trabalho ético que se efetua sobre si mesmo, não somente para tornar seu próprio comportamento conforme uma regra dada, mas também para tentar se transformar a si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta [...]. Finalmente, outras diferenças dizem respeito ao que se poderia chamar de teleologia do sujeito moral: pois uma ação não é moral somente por si mesma e na sua singularidade; ela o é também por sua inserção e pelo lugar que ocupa no conjunto de uma conduta; ela é um elemento e um aspecto dessa conduta, e marca uma etapa em sua duração e um progresso eventual em sua continuidade. Uma ação moral tende à sua própria realização; além disso, ela visa, através dessa realização, a constituição de uma conduta moral que leva o indivíduo, não simplesmente a ações sempre conformes aos valores e às regras, mas também a um certo modo de ser característico do sujeito moral. [8]

BIBLIOGRAFIA:

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. O Combate da castidade. In: ARIÈS, Philippe et BÉJIN, André. (Org.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

PRADEAU, Jean-François. O sujeito antigo de uma ética moderna. In: Gros, F (org.) Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial.


[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. p. 27.

[2] Ibid. p. 9.

[3] Ibid. p. 10.

[4] Ibid. p. 27.

[5] Ibid. p. 26.

[6]FOUCAULT, Michel. O Combate da castidade. In: ARIÈS, Philippe et BÉJIN, André. (Org.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 28-29.

[7]FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.p. 46.

[8]FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. pp. 27-28.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Espinosa e a Crítica ao Livre Arbítrio


CRÍTICA À NOÇÃO DE LIBERDADE DA VONTADE OU LIVRE ARBÍTRIO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

“A vontade não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária” [1]

A questão da liberdade representa um tema clássico da filosofia, sendo um conceito que coleciona muitas polêmicas, pois envolve a clássica oposição entre necessidade e contingência. Baruch Espinosa, sendo um filósofo racionalista e determinista absoluto, recusa uma ideia de vontade livre, alegando que a faculdade de livre arbítrio não passa de uma ilusão da imaginação. Sendo característica de nossa consciência imediata, a imaginação apenas representaria um primeiro gênero de conhecimento, constituindo, assim, fonte de falsidade. Assim, “a crença no livre arbítrio é, aos olhos de Espinosa, o preconceito primordial, fonte de todos os outros.” [2]

O presente trabalho pretende explicitar a crítica à noção de liberdade da vontade (ou livre arbítrio) na filosofia de Espinosa, tomando como base sua obra mais importante, que é a Ética. Nela Espinosa segue uma trajetória que vai da metafísica e da epistemologia à ética, nos trazendo uma crítica à vontade livre, tradicionalmente segundo a qual o sujeito teria pleno poder de escolha entre o “sim” e o “não”, e também uma nova concepção de liberdade aos moldes de sua filosofia determinista. Para que consigamos compreender sua argumentação, faz-se importante, em linhas gerais, a exposição de alguns pontos, para que assim tenhamos base para defender sua crítica e, sem contradição alguma, poder chamá-lo de filósofo da liberdade e designar sua filosofia como uma filosofia de (e para) homens livres.

Em primeiro lugar, Espinosa considera que o homem é submetido às leis necessárias que regem a Natureza, não existindo, assim, a possibilidade de contingência, pois, seguindo-se o princípio de causalidade, atestaríamos que para tudo há uma causa e esta, por sua vez, encontra-se na própria Natureza, e não em um plano transcendente. A identificação entre Deus e a Natureza é capital para a construção argumentativa que visa criticar o livre arbítrio:

A identificação entre Deus e a Natureza, assinalada na citação do Tratado e demonstrada na primeira parte da Ética, por si só já indica claramente que o Deus de Espinosa em nada se confunde com o Deus transcendente, pessoal e criador da tradição judaico-cristã. Seu Deus é imanente à Natureza, e o conhecimento de nossa união com ele nada mais é do que o conhecimento intelectual de nós mesmos como partes da Natureza, partes integralmente submetidas, como todas as outras, às leis causais necessárias que regem o comportamento das coisas naturais. Neste espaço teórico dominado pelas ideias de imanência e necessidade, a exigência racionalista de inteligibilidade integral do real será colocada a serviço da intuição fundamental da unidade da Natureza e levada às últimas consequências. [3]

Uma vez que o homem é submetido às leis da Natureza, que é a totalidade e identifica-se com Deus – sendo a única substância e causa de si mesma -, a vontade, que segundo Espinosa é a essência do homem, não representa algo transcendente, mas está submetida às mesmas leis naturais as quais todos os outros fenômenos também estão. Para Espinosa tudo é causa de alguma coisa: com a vontade isso não poderia ser diferente. Torna-se importante destacar o conceito de conatus, termo que significa esforço em latim, para compreender a determinação, que necessariamente engloba a vontade, pois “o interesse do corpo e da alma é a existência e tudo quanto contribua para mantê-la.” [4]

Segundo Espinosa, “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” [5], sendo que, a partir das afecções que a coisa sofreu, ela tende sempre a buscar aquilo que a conserve ou aumente a sua capacidade de afetar outros corpos. O conatus, portanto, é uma potência natural de autoconservação, “com a peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de possuir o esforço de perseveração na existência” [6]. Ao possuirmos a ilusão de que, como resultado de nossa absoluta e livre vontade, podemos escolher entre o “sim” e o “não”, nós estamos ignorando o fato de que tal estado de passividade e dúvida é somente a oscilação entre duas vontades contrárias, uma limitando a outra, e que ambas tendem a perseverar em seu ser, sem nenhuma contradição interna. É a partir desses aspectos apresentados que podemos enxergar a crítica de Espinosa ao livre arbítrio, pois, em última análise, ao ter a consciência de que possuímos um apetite - constituindo, assim, o que chamamos de desejo - não significa que somos os autores dos mesmos: apenas seguimos uma série de determinações causais, sem conhecê-las completamente. E, assim, acreditamos desejar livremente. Entretanto, ter a consciência do apetite não muda em nada a sua natureza, sendo que esse somente será superado por um apetite mais poderoso. Da mesma forma, ter uma ideia já é afirmá-la por si só: a afirmação de sua veracidade será abandonada em prol da afirmação de outra mais clara e distinta, mas não devido a um suposto livre arbítrio.

Seguindo o conceito de conatus “os propósitos e intenções que realizamos, passiva ou ativamente, não são escolhidos por nossa vontade, mas exprimem a causalidade eficiente de nosso apetite e de nosso desejo” [7]. Isso significa que a vontade livre é uma ilusão, uma vez que nossos apetites e desejos são regidos pelo princípio de causalidade, assim como qualquer outro evento natural. Outra razão para que tal ilusão ganhe uma força descomunal é a que se refere ao fato de que nos focamos nos efeitos e ignoramos as causas: diz Espinosa que todos nós nascemos ignorantes das causas das coisas e que buscamos o útil, com a consciência dessa busca. Entretanto, pela ignorância das causas que os determinam a desejar algo, os homens se consideram livres, pensando que buscam uma coisa por a considerarem boa; e não o contrário. Na verdade, para Espinosa, os juízos de valor que formulamos, e, consequentemente, a ideia confusa de que buscamos algo pela influência desses juízos, designam o nosso conatus, ou seja, a nossa própria essência - que é desejo e apetite -, muito mais do que imaginamos. “Assim, um desejo cujo múltiplo condicionamento causal é ignorado é apreendido como um desejo incondicionado, o sujeito considerando-se como sua causa primeira e única.” [8]

Espinosa nos traz, porém, uma nova visão de liberdade, calcada em raízes deterministas (e não fatalistas), onde a determinação do sujeito deriva-se a partir de sua essência, ou seja: o sujeito ativo se autodetermina, regido pela razão e pelo intelecto, e age sem constrangimento. Voltando à crítica de Espinosa, concluiremos nossa breve análise com uma comparação entre a pedra e o homem:

Se a pedra lançada tivesse consciência do seu movimento, e da sua tendência a perseverar no movimento, julgar-se-ia livre, na medida em que ignoraria o impulso que produziu o seu movimento, que determinou de uma certa maneira a sua faculdade de estar em movimento ou em repouso. Do mesmo modo, aquele que na cólera, na embriaguez ou em sonho, crê agir livremente, é porque ignora as forças que o impelem contra a sua vontade. [9]

BIBLIOGRAFIA:

MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.

GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos).

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


[1] Ética, Livro I, proposição 32.

[2] MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 46.

[3] GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 8.

[4] CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos). p. 63

[5] Ética, Livro III, proposição 7.

[6] CHAUÍ, Marilena de Souza. op. Cit.

[7] Ibid. p. 64

[8] GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 9.

[9] MOREAU, Joseph. op. Cit.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Por uma educação não autoritária


A ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL E A BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO NÃO AUTORITÁRIA

O educador não tem o senso do fracasso justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda. [1]

A experiência de uma educação calcada na construção do saber, ao invés de um simples depositário de conhecimento, vem revelando novas perspectivas pedagógicas, levando o alunado, bem como o professor, a novos empreendimentos, tanto pessoais, cidadãos, como profissionais. É importante destacar que o processo educativo começa muito antes do período escolar, pois muitos alunos, como herança da família, carregam visões de mundo que, mesmo embrionárias, possuem profundas raízes. Tais visões e convicções da criança, ou do jovem, constituem materiais que não devem ser abandonados por uma psicologia aplicada à avaliação da aprendizagem que vise o aluno como um todo, inclusive a superação de suas dificuldades com o conhecimento de sua específica condição histórica e cultural.

O presente trabalho busca analisar, dentro de linhas gerais, o conceito de zona de desenvolvimento proximal; conceito que foi marcante na obra de Lev Semenovich Vygotsky e que servirá como eixo para a nossa abordagem e defesa de uma educação não autoritária, visão compartilhada por outros autores que também apresentaremos aqui. Tal concepção representa nada mais do que a adesão a uma educação que tem como base o diálogo para a construção do saber e para o desenvolvimento mental do aluno, não avaliando somente os resultados, mas também o processo de desenvolvimento. Antes visto apenas como um meio sem muita importância, o processo pelo qual o estudante passa, necessariamente para alcançar um resultado, constituirá análise importante para a psicologia sócio-histórica de Vygotsky. A zona de desenvolvimento proximal distingue-se do desenvolvimento real, que representa o conhecimento concreto e individual, e revoluciona toda a noção de desenvolvimento, uma vez que não privilegia somente o concreto do conhecimento, abrindo as portas para um possível desenvolvimento da capacidade de abstração, ou seja, da formação de um conhecimento baseado em relações complexas entre seus objetos de estudo. Antes, porém, devemos entender o conceito de mediação simbólica para que tenhamos uma base sólida e partir para esses dois elementos que pretendemos explicitar.

A mediação calca-se na ideia de que a relação do homem com o mundo não é direta, mas mediada pelo simbólico, ou seja: essa relação indireta é mediada pelo uso de instrumentos e signos. O uso dessas mediações, segundo Vygotsky, explicita a psicologia humana fundamental, que é a internalização das atividades, sejam instrumentais ou simbólicas: o instrumento sendo direcionado para a resolução de algo exterior ao indivíduo e o símbolo direcionado para a resolução de algo interior. Isso revelaria a “plasticidade” do cérebro humano, pois abria campo para novas funções, que poderiam surgir também com a vida do indivíduo, no desenrolar de sua trajetória sócio-histórica. O uso de tais artifícios carrega consigo um processo de internalização. E, em muitos casos, o outro passa a constituir papel fundamental para o desenvolvimento desse processo. Na psicologia sócio-histórica o sujeito é valorizado não somente pela mediação que representa, mas pela troca que constitui com outros para a construção do conhecimento e de uma identidade que não é fixa, muito menos absoluta.

Uma suposta carga cognoscitiva e afetiva que o aluno traz de processos educativos mais gerais (como a família) passa a ser considerada importante quando se desenvolve uma prática pedagógica. Constitui-se, assim, grande erro a crença de que o processo de aprendizagem começa como uma primeira aula, como explicita Bachelard:

Acho surpreendente que os professores de ciências, mais do que os outros se possível fosse, não compreendam que alguém não compreenda. Poucos são os que se detiveram na psicologia do erro, da ignorância e da irreflexão. O livro de Gérard Varet (Essai de Psychologie objective. L’Ignorance et L’Irreflexion) não teve repercussão. Os professores de ciências imaginam que o espírito começa como uma aula, que é sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repetição da lição, que se pode fazer entender uma demonstração repetindo-a ponto por ponto. Não levam em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana.[2]

No caso de Bachelard, o progresso na ciência, com um sentido pedagógico implícito, baseia-se no abandono de erros passados e no empreendimento de novos métodos, que, por sua vez, um dia serão ultrapassados. O sentido de mudança, como fruto da dialetização dos saberes, é necessário para que um conhecimento novo surja. E esse saber nasce num plano discursivo, ou seja, coletivo, no qual a repetição fica em segundo plano em prol de um jogo de polêmicas que faria com que o aluno compreendesse o sentido que tal conhecimento possui e a partir de quais perguntas ele surgiu. Para Bachelard, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Não estamos nos colocando muito longe da psicologia sócio-histórica ao citar Bachelard, uma vez que, para o filósofo, a epistemologia deve ser histórica e o conhecimento, no caso o científico, deve ser fruto da discussão da cidade científica, com uma pedagogia muito peculiar.

A crítica de Vygotsky em relação à psicologia, quando em sua análise do desenvolvimento mental da criança, está na extrema valoração conferida ao desenvolvimento real (ou seja, aquilo que a criança consegue fazer por si mesma, de caráter individual) em detrimento de um outro desenvolvimento, que poderia nos revelar muitos mais sobre a formação dos ciclos mentais. Esse outro aspecto, não valorizado pela tradição, representa o conjunto de resoluções realizadas pela criança sob a tutela de alguém ou sob o fornecimento de pistas para que tal objetivo possa se cumprir. Vygotsky atestou que crianças com o mesmo desenvolvimento real (ou seja, com a mesma capacidade de resolução de problemas individuais) diferiam quando o segundo caminho era proposto, ou seja, quando a resolução consistia num trabalho coletivo ou segundo auxílios. Essa diferença Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal.

A zona de desenvolvimento proximal, assim, representa

A distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. [3]

Segundo Vygotsky, essa zona refere-se às funções que ainda não amadureceram, sendo que seu estímulo capital é a interação e o diálogo, ou seja, o trabalho coletivo. O papel da imitação também é enxergado numa nova perspectiva, pois ao entrarmos num esquema cooperativo, imitamos, internalizamos o instrumental e o simbólico; mas também criamos um diálogo interno que pode ser um grande operador de transformações no indivíduo.

O papel do educador, não importando à qual disciplina ele pertença, não deve se basear numa estrutura gnoseológica definitiva, e sim num processo coletivo de criação e de descoberta, no qual o aluno passa a ser central. Sendo assim, os desdobramentos que podemos enxergar no caráter avaliativo são muitos. Segundo Romão, “a avaliação deixa de ser um processo de cobrança para se transformar em mais um momento de aprendizagem, tanto para o aluno quanto para o professor”. [4] Isso significa que a avaliação não deve ter como foco principal o resultado do processo de conhecimento, mas o sim o processo de conhecer; e mais do que individual: a avaliação deve levar em grande consideração o processo de conhecer que se dá no âmbito cooperativo. Ela pode nos revelar, e também desenvolver no aluno, capacidades que se apresentavam apenas em potencial e que necessitavam de mediação para que se efetivassem.

Romão enfatiza que tais concepções de educação e avaliação representam uma pedagogia cidadã e, em oposição ao quadro positivista, ele exalta uma prática que estimule a dinamicidade no ensinar e no aprender, ou seja, em sua constante reconstrução:

A educação e a avaliação positivistas enfatizam a permanência, a estrutura, o estático, o existente e o produto; as construtivistas reforçam a mudança, a mutação, a dinâmica, o desejado e o processo. A educação e a avaliação cidadãs devem levar em consideração os dois pólos, pois não há mudança sem a consciência da permanência; não há processo de estruturação-desestruturação-reestruturação sem domínio teórico das estruturas – a reflexão exige “fixidades” provisórias para se desenvolver; não há percepção da dinâmica sem consciência crítica da estática; o desejado, o sonho e a utopia só começam a ser construídos a partir da apreensão crítica e domínio do existente, e o processo não pode desconhecer o produto para não condenar seus protagonistas ao ativismo sem fim e sem rumo. [5]

O obstáculo que temos que transpor (e que deve ser profundamente conhecido), enquanto mestres, basicamente é a nossa concepção ultrapassada de avaliação, que muitas vezes entrava o progresso do conhecimento e empobrece a prática pedagógica, influenciando negativamente o procedimento avaliativo, e tornando-a somente a contemplação de um único aspecto, que pode não dizer muito sobre o aproveitamento e desenvolvimento do aluno, este avaliado individualmente. Afinal, o aluno está sendo preparado para trabalhar e cooperar em sociedade, seja em qualquer âmbito. E não para ser um sujeito isolado, fora da esfera social.

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento objetivo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006

ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação Dialógica: desafios e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2001

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.


[1] BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento objetivo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 24.

[2] Ibid. p. 23.

[3] VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente São Paulo, Martins Fontes, 1984. p.97.

[4] ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação Dialógica: desafios e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2001. p. 88.

[5] Ibid. p. 89.