O CONCEITO DE RECONHECIMENTO NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO: UMA ANÁLISE DOS §§ 178-184
“A consciência-de-si é em si e para si e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido”[1]
Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito, abordará o conceito de reconhecimento como etapa fundamental da formação do espírito e do desenvolvimento da consciência, colocando o papel de uma outra consciência - o outro - como capital para que esse processo aconteça efetivamente. Num primeiro momento nós ignoramos que “a consciência se acha numa outra”, pois temos a tendência de achar que é nela mesma que ela se encontrará. Nós ignoramos um aspecto de alienação, de estranhamento, pois ela encontra ela mesma em um lugar que não é o seu próprio. Hegel, assim, coloca-se contra as correntes filosóficas que sustentam o solipsismo, pois, afirmando que a consciência se encontrará num lugar que não é o dela, empreende uma viagem para fora de si como condição essencial para o autoconhecimento. Este, por sua vez, se dá pelo reconhecimento.
Eis o conflito interno de cada sujeito entre o desejo por si mesmo e o desejo pelo outro, como necessidade de reconhecimento inerente a todo ser humano, em virtude do qual cada eu aspira a ser reconhecido por outrem assim como também aspira à sua destruição:[2]
A consciência não permanece durante muito tempo, como uma cativa, no reino das leis, por ela fundado. Opõe-se-lhe em breve e, neste frente a frente, ganha a certeza de si própria e acede à consciência de si. A consciência volta-se então para os objetos exteriores, no desejo, e destroi-os apropriando-se deles, na saciedade do desejo.[3]
Esse caminho que começa a se delinear é o da autoconsciência, no qual a consciência começa a entender o que ela é. Hegel exalta o seu caráter de apropriação, no qual o outro é visto como um objeto de desejo: um meio para o fim. Nesse momento a consciência quer fazer tudo depender de si; ela tenta excluir a alteridade independente de si, seguindo seu apetite. Entretanto, o outro passará de não essencial para capital, pois essa consciência irá se confrontar com outras consciências e atestará, empiricamente, que seus desejos não podem ser satisfeitos a todo o momento: a outra consciência é um objeto com vontade própria e que, mais ainda, pode fazer com a primeira consciência tudo o que essa faz com aquela. O outro oferecerá resistência e será capaz de fazer coisas que nenhum outro objeto faria.
A consciência, de certa maneira, sonha que pode conseguir o que deseja no aqui e no agora, considerando-se prioritária no seu reencontro. Evidencia, assim, sua tendência egoísta em seu desejo de auto-afirmação. No final das contas, o que a consciência deseja é um retorno a si mesma, mas, tão logo entra em choque com o mundo, percebe que esse reencontro é mediato. A consciência quer arrancar do outro a visão que ela tem dela, ou seja, a consciência quer ser objetivamente configurada: só assim a sua própria certeza será verdade. Tudo o que a consciência quer é se totalizar; para isso, precisa do reconhecimento do outro, que é um diferente, mas ao mesmo tempo um igual: o reconhecimento só será reconhecimento se for feito por um outro igual.
Segundo Kojève “o homem, sendo livre e autônomo, reconhece que os outros são igualmente livres e autônomos. E, de modo inverso, ele só é livre e autônomo se for livremente reconhecido como tal pelos outros” [4]: nessa passagem, torna-se clara, a importância dada ao papel do outro para o reconhecimento do mesmo. O outro é condição de autodescoberta. Hegel quer destacar que o outro é figura capital, ou seja, integralmente importante no autoconhecimento: as ações começam no eu, passam pelos outros e voltam para o eu (refluxo). O movimento próprio do Espírito é o “movimento do refletir-se em si mesmo”: há três momentos; um do ser em si; o outro do ser “fora de si” ou “ser outro” e um terceiro que é o do “retorno a si” ou “ser em si e para si.”
As consciências que entram em cho que, porém, ainda não tomaram consciência de que são uma para a outra. Entretanto, o passar para o próximo estágio desabrochará no reconhecimento de que o outro é autônomo e livre: para tal, como dito anteriormente, ele tem que ser reconhecido como livre e autônomo por outra consciência livre e autônoma. Segundo Hegel:
Esse suprassumir de sentido duplo do seu ser-Outro de duplo sentido é também um retorno, de duplo sentido, a si mesma; portanto, em primeiro lugar a consciência retorna a si mesma mediante esse suprassumir, pois se torna de novo igual a si mesma mediante essa suprassumir do seu ser-Outro; segundo, restitui também a ela mesma a outra consciência-de-si, já que era para si no Outro. Suprassume esse seu ser no Outro, e deixa o Outro livre, de novo.[5]
O movimento do reconhecimento acontece quando, não mais a consciência é clara para ela mesma, mas sim quando o é em relação a um outro. A consciência jamais será consciência se não for reconhecida como tal. O reconhecimento constitui, assim, uma unidade na duplicidade, pois representa uma dialética entre identidade e alteridade, na qual a aceitação também se revela importante. Em contraposição a uma unidade imediata (cartesiana), que representa uma dedução da consciência-de-si, Hegel faz do elemento diferença uma condição para que tenhamos um reconhecimento e um autoconhecimento verdadeiros:
O duplo sentido do diferente reside na [própria] essência da consciência-de-si: [pois tem a essência] de ser finita, ou de ser imediatamente o contrário da determinidade na qual foi posta. O desdobramento do conceito dessa unidade espiritual, em sua duplicação, nos apresenta o movimento do reconhecimento.[6]
Para Hegel, a consciência de si não é uma identidade imediata dada por uma intuição intelectual, e sim um retorno no qual passamos pelo outro, num movimento duplo, pois o outro também se autoconhece. O reconhecimento depende da identidade, só que mais ainda do contrário da identidade, ou seja, da alteridade. Não há uma essência se não existir outra.
Assim, Hegel estabelece que, para que tenhamos um reconhecimento, temos que fazer abstração do ser-para-si: sair dele e ir para o outro, numa espécie de apropriação do outro pelo mesmo e de dissolução da identidade na alteridade. A consciência só pode ser concluída plenamente após entrar numa luta de vida ou morte, ou de dominação ou servidão, na qual será reconhecida em sua condição. Não adentraremos nessa complexa temática, mas cabe ressaltar que os conceitos de dominação e servidão são trabalhados em um sentido amplo, com pretensões de aplicabilidade a todos os momentos, e não só aqueles que marcaram, definitivamente, a história da humanidade.
BILIOGRAFIA:
D’HONDT, Jacques. Hegel. Tradução de Emília Piedade. Lisboa: Edições 70, 1984
Dicionário de Obras Filosóficas/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [Verbete: Fenomenolgia do Espírito, pp. 226-229].
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora da Universidade do Rio de Janeiro, 2002, pp. 49-54.
REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Do Romantismo até nossos dias, Vol III, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990, pp. 111-119.
[1] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002. p. 142.
[2] Dicionário de Obras Filosóficas/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [Verbete: Fenomenolgia do Espírito, pp. 226-229].
[3] D’HONDT, Jacques. Hegel. Tradução de Emília Piedade. Lisboa: Edições 70, 1984. p. 36
[4] KOJÈVE, Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora da Universidade do Rio de Janeiro, 2002, p. 50.
[5] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002. p.143
[6]Ibid.
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