Há pelo menos uma realidade que todos apreendemos por dentro, por intuição e não por mera análise. É nossa própria pessoa em seu escoamento através do tempo. É nosso eu que dura. Podemos não simpatizar intelectualmente, ou antes, espiritualmente, com nenhuma outra coisa. Mas certamente simpatizamos com nós mesmos.[1]
O CONCEITO E O OBJETO CONCRETO: CAMINHOS DA INTELIGÊNCIA E DA INTUIÇÃO EM HENRI BERGSON
Pretendemos, no presente trabalho, fazer uma distinção entre inteligência (ou análise) e intuição, trazendo, à luz da filosofia de Henri Bergson, as implicações de tais métodos. Caberá evidenciarmos, se possível, a diferença capital entre seus respectivos produtos: a construção do conceito – obra da análise – e a experiência do objeto concreto, da duração – através de um ato simples, que é a intuição. Através dessas distinções buscaremos exaltar o sentido que o filósofo confere à metafísica, bem como sua visão acerca da filosofia. A essência da filosofia, para Bergson, é o espírito da simplicidade, pois sempre verificamos que a complicação é superficial, a construção um acessório, a síntese uma aparência. Como exemplificação, traremos a questão proposta pelo paradoxo de Zenão de Eléia e a posterior crítica bergsoniana.
Segundo Bergson, existem duas maneiras, profundamente diferentes, de se conhecer uma coisa. Elas se traduzem num conhecimento relativo e num conhecimento absoluto. Na primeira, de maneira ilustrativa, nós conhecemos o objeto através de perspectivas que adotamos em relação ao mesmo, ou seja, nós o conhecemos “dando voltas ao redor dele”. Na segunda, nós penetramos, mergulhamos no objeto mesmo: essa última experiência foge aos símbolos, pois estes são necessidades de uma perspectiva que se dá no exterior, constituindo pontos de vista. A intuição, portanto, permite a apreensão do absoluto, uma vez que não tem como base uma determinada perspectiva, e sim a apreensão do objeto em sua intimidade:
Uma representação tomada de um certo ponto de vista, uma tradução feita com certos símbolos permanecem sempre imperfeitas em comparação com o objeto do qual a vista foi tomada ou que os símbolos procuram exprimir. Mas o absoluto é perfeito na medida em que ele é perfeitamente aquilo que ele é. [2]
Para Bergson a realidade concreta, a realidade desprovida de seus símbolos e das leis que impomos a ela, é a duração: contínua mudança qualitativa, um puro tornar-se, a trama mesma do devir da consciência, apreensível somente pela intuição. Faz-se importante, então, a distinção entre análise e intuição para que compreendamos esse aspecto do pensamento de Bergson. A inteligência, ao elaborar conceitos e ao trabalhar analiticamente, fragmenta, espacializa e fixa a realidade. Por outro lado, Bergson reconhece que essa forma de atividade intelectual, marca de um “eu superficial”, possibilita a ciência e a própria sobrevivência. [3] Guiado por uma índole pragmática, por estabelecer somente relações entre características gerais dos objetos, “o conceito deixa escapar a natureza mesma do objeto” [4]. Isso significa, e atestamos isso na história da filosofia, que a fragmentação do qualitativo em quantitativo possui pretensões de alçar-se a um conhecimento absoluto, mas que nunca irá atingi-lo, pois o método para se chegar ao absoluto é outro:
Chamamos aqui de intuição a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único e, por conseguinte, inexprimível. Pelo contrário, a análise é a operação que reconduz o objeto a elementos já conhecidos, isto é, a elementos comuns a esse objeto e a outros. Analisar consiste portanto em exprimir uma coisa em função daquilo que não ela. [5]
Enquanto a inteligência prende-se a interesses práticos, a intuição os ultrapassa visando uma compreensão profunda da duração, saindo, assim, da superficialidade. A preocupação da inteligência encontra-se no campo das ações, uma vez que a memória é ativada em função do sensório-motor, devido a nossa inserção no mundo da matéria, que deve ser feita de forma eficaz. “Ao traduzir o real em uma linguagem simbólica e abstrata, [a inteligência] inventa meios e artefatos que garantam a economia e o progresso ininterrupto do ser humano na labuta do mundo material” [6].
A intuição não pode se confundir com a inteligência e muito menos com o instinto. Esse último é marcado por uma repetição, visando também a solução de um problema, no momento imediato, enquanto a inteligência também pode se distanciar ou se antecipar para agir, mediante a contemplação das “formas” e de suas relações, pretendendo fazer previsões do futuro. Para Bergson, a intuição é um instinto que se tornou desinteressado, consciente de si, capaz de tomar seu objeto e ampliá-lo indefinidamente. A filosofia, por sua vez, estava seguindo um caminho no qual lhe faltava precisão, pois se distanciava muito da realidade vivida. Bergson sente a necessidade de ultrapassá-lo para empreender um meio distinto de apreensão da realidade. [7] Uma das correntes combatidas por Bergson, e dominante na época, é a ciência positiva, que reduz o real ao método das ciências da natureza, ou seja, à análise. A análise é um hábito e a inteligência também o é.
“Analisaremos”, aqui, o paradoxo da flecha, formulado por Zenão de Eléia e faremos uma crítica à luz da tese de Bergson acerca da fragmentação da realidade concreta causada pela análise. Essa realidade que está em jogo é movimento. O argumento de Zenão pretende que a flecha, em seu voo, esteja imóvel, baseando-se em uma concepção de tempo composto por instantes. A flecha percorre uma trajetória, ocupando, a cada instante, determinados espaços: a força do paradoxo está na ideia de que uma coisa está sempre em repouso quando ocupa um lugar idêntico a si mesma. Daí, segundo Zenão, segue-se que o movimento é uma ilusão dos sentidos, pois aceitá-lo seria uma contradição, uma vez que repouso e movimento são categorias claramente distintas. O movimento seria uma construção – no caso, da visão – que representa uma síntese dos sucessivos repousos, nos dando essa específica sensação. A dialética de Zenão, ilustrada pelos seus paradoxos, nos indica uma cisão entre logos e realidade, contra a percepção, que é desvalorizada.
Para Bergson, a inteligência despedaça a duração – no caso o movimento da flecha –, pois, ao fixar a sua trajetória em estágios, ela deixa escapar o próprio movimento, espacializa o devir, e, assim, o nega. Entretanto, para o filósofo é a intuição que deve apreender a duração, pois “ela apreende uma sucessão que não é justaposição, um crescimento por dentro, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que penetra no futuro”. [8] Bergson, então, coloca-se criticamente diante da metafísica:
Por isso, a metafísica – que não deve ser vista como mero jogo de ideias abstratas, mas como “ocupação séria do espírito” – teria na intuição seu método adequado. Bergson reconhece que os conceitos são indispensáveis à metafísica, na medida em que esta não pode dispensar as outras ciências, que todas trabalham com conceitos; mas reconhecem também que a metafísica só é propriamente ela enquanto se liberta dos conceitos já prontos e consagrados pelo hábito, para criar “representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldar pelas formas fugidias da intuição”.[9]
Bibliografia:
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 179.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo; tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.
MACIEL Jr., Auterives. O TODO ABERTO: Tempo e subjetividade em Henri Bergson. Rio de Janeiro, UERJ, Departamento de filosofia, 1997, 159 fls. Mimeo. Dissertação de mestrado em filosofia.
[1] BERGSON, Henri. Introdução a metafísica. In: O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 188.
[2]Ibid. p. 186.
[3] BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 179. p. X.
[4] Ibid. p. X.
[5]BERGSON, Henri. Introdução a metafísica. In: O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 187.
[6] MACIEL Jr., Auterives. O TODO ABERTO: Tempo e subjetividade em Henri Bergson. Rio de Janeiro, UERJ, Departamento do filosofia, 1997, 159 fls. Mimeo. Dissertação de mestrado em filosofia. p. 67.
[7] Ibid. p. 76.
[8] BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 114.
[9] BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 179. p. XII.
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