domingo, 18 de janeiro de 2009

As restrições da razão pública em Rawls e Habermas


A RAZÃO PÚBLICA EM RAWLS E HABERMAS


Desde que o indivíduo razoável respeite a liberdade constitucional baseada em princípios políticos respeitáveis, ele pode fazer qualquer reivindicação na esfera pública. A razão pública é, por definição, universalizante. Tal idéia, segundo John Rawls, relaciona-se com uma concepção de sociedade democrática constitucional bem ordenada; e também com o próprio conceito de democracia. O cenário que se constitui como pano de fundo é o do pluralismo razoável, onde o cidadão é dotado de duas capacidades morais: a racionalidade (capacidade de projetar certos fins e percorrer os meios) e a razoabilidade (capacidade que define que meios são aceitáveis para tais fins, indicando os limites e podendo ser entendida como um senso de justiça). Para Rawls o razoável delimita o racional, pois a racionalidade não dá conta, totalmente, do que é ser um cidadão: nós podemos proteger-nos de certos meios. Os cidadãos são livres e iguais, porém, divergem de maneira irreconciliável entre si; nós acordamos não como cidadãos democráticos, mas como seres com convicções profundas. A questão central a ser tratada, em meio a esse cenário, é o papel da razão pública na legitimidade política: de onde as normas (direitos e deveres fundamentais) tiram a sua legitimidade? Para Rawls, não se pode fazer uma boa filosofia política sem partir do pressuposto de que nós divergimos dos outros e também de nós mesmos.

Toda justificação de normas reside no acordo entre cidadãos livres e iguais em razões publicamente acessíveis. Essa acessibilidade é possível na medida em que todos os cidadãos possam concordar racionalmente com essa justificação. A validade das normas é estabelecida em um procedimento argumentativo que, por sua vez, acarreta o problema de delimitar as fronteiras entre o público e o não-público.


Os cidadãos percebem que não podem chegar a um acordo ou mesmo aproximar-se da compreensão mútua com base nas suas doutrinas abrangentes irreconciliáveis. Em vista disso, precisam considerar que tipos de razões podem oferecer razoavelmente um ao outro quando estão em jogo perguntas políticas fundamentais (RAWLS, 2001, p.174).


Rawls é um construtivista, pois não fala em uma intuição e sim em um aprendizado. Por doutrinas abrangentes entendemos as doutrinas filosóficas, morais, religiosas ou seculares que abrangem a vida inteira dos indivíduos: os homens as utilizam para compreender as suas próprias vidas, ou seja, são razões não-públicas e não acessíveis, de certa maneira, a todos os cidadãos. Para Rawls nós temos que abrir mão de nossas pretensões de verdade ao formular nossas justificações na esfera pública, pois a verdade não cabe na política; assim, uma concepção de bem é trocada pelo politicamente razoável. A razão pública não surge de algo que não podemos conhecer. Essa idéia de deliberação, de raciocínio público, de aceitabilidade racional, sendo expressa por uma família de concepções razoáveis de justiça política, tem um papel normativo e seu critério fundamental é o da reciprocidade. Tal critério exige que quem propõe os termos justos de cooperação pense também que é ao menos razoável que os outros aceitem tais termos como cidadãos livres e iguais, sob pressão de nenhuma espécie e sem qualquer manipulação: é o princípio de legitimidade. O Estado tem que ser neutro quanto a visões de mundo, ele é secular. Ambos, Rawls e Habermas, estão no campo da razão pública, do discurso. Habermas comunga da mesma concepção deliberativa de Rawls, mas se opõe no que diz respeito ao fato da razão pública tornar os cidadãos desiguais (sendo notável no impasse entre cidadãos seculares e religiosos) e clama pela busca da inclusão.

A separação entre Igreja e Estado é o princípio básico da sociedade moderna. O Estado Democrático de Direito permite a liberdade de religião e também a liberdade de não se seguir nenhuma doutrina religiosa ou não-religiosa. Porém a razão pública não deve ser confundida com uma razão secular e com valores seculares. O raciocínio secular baseia-se em uma doutrina abrangente não-religiosa, possuindo um mesmo núcleo dogmático, podendo, inclusive, funcionar independentemente da concepção política de justiça. Da mesma forma, a razão pública, mesmo não sendo inimiga de tais razões, possui valores que podem ser apresentados independentemente das doutrinas abrangentes, como, por exemplo, as idéias de que os cidadãos são livres e iguais e a idéia da sociedade como um sistema justo de cooperação. Rawls e Habermas defendem a concepção moderna da predominância do justo sobre o bem; e para isso devem ser dados os limites. O limite da coerção é dado pela razão pública. Estamos participando de tal razão ao recorrer aos seus valores em um debate sobre questões políticas fundamentais; mas podemos introduzir nossas doutrinas abrangentes, religiosas ou não, contanto que, no devido tempo, ofereçamos razões adequadamente públicas para apoiar os princípios e políticas que a nossa doutrina supostamente sustenta. Essa é a cláusula restritiva da razão pública em John Rawls. Com o fato do pluralismo surge a questão:


Como é possível- ou será possível- que fiéis, assim como os não-religiosos (seculares), endossem um regime constitucional, mesmo quando suas próprias doutrinas abrangentes podem não prosperar sob ele e podem, na verdade, declinar? (RAWLS, 2001, p.196).


Será que eles perderiam sua identidade com tal restrição? Para conseguir essa compatibilidade não é suficiente que as doutrinas abrangentes aceitem o governo democrático como um modus vivendi: o ideal é a amizade cívica e não uma tolerância instrumental.

Com essa cláusula restritiva (conhecida como proviso) é permitida a distinção entre a cultura política pública e a cultura de fundo. Não podemos usar argumentos unicamente de doutrinas abrangentes na justificação de questões de justiça básica, mas podemos introduzi-los ao seguirmos essa ressalva. Temos que buscar razões políticas adequadas que justifiquem suficientemente nossas doutrinas abrangentes. É preciso fazer uma tradução política de razões não-políticas. Um candidato não está ferindo a razão pública ao dizer que é religioso, mas a fere ao tentar disseminar o seu credo: não é viável que um religioso leve para a esfera pública argumentos religiosos não-traduzidos. O proviso tem que ser cumprido. Mas será que essa exigência de tradução da razão pública não limita o critério de reciprocidade? As doutrinas abrangentes são as raízes da participação pública dos cidadãos (elas dão força para essa participação) e até podem sustentar valores constitucionais básicos em seu núcleo e, conseqüentemente, concepções razoáveis de justiça política; para Rawls, porém, a tradução deve, necessariamente, ser realizada na esfera pública, seja por cidadãos comuns, por candidatos a cargos públicos ou por instituições políticas: há a possibilidade da existência de doutrinas abrangentes na discussão pública, desde que haja essa tradução. O liberalismo não é uma simples acomodação de tais doutrinas; é preciso um acordo. Com o proviso, o compromisso com a democracia se anuncia. A problemática que se estabelece é em quem recai a obrigação de honrá-lo.

Habermas vai destacar o problema da religião na política, inspirado na obra de Rawls, e se questionará acerca da obrigatoriedade do proviso. “Por que cidadãos religiosos são mais onerados para se fazer uma tradução política? Por que o religioso tem mais especificidade que o secular?” Habermas exalta o fato de que os cidadãos religiosos estão submetidos a maiores cargas de exigência do que os cidadãos seculares; e ao mesmo tempo reconhece que as religiões poderiam trazer algo de bom para a política, contanto que sejam razoáveis. Muitas doutrinas religiosas têm dificuldade na adaptação à Modernidade e a própria idéia de um Estado secular nos faz questionar se o processo de modernização implica um processo de secularização (e essas concepções estão entrelaçadas com a razão pública). Se sim, será que essa separação implica também a separação entre política e religião? Os eventos na virada do milênio abalaram muitos teóricos, pois tais fatos evidenciaram a vitalidade das doutrinas abrangentes (religiosas principalmente), colocando em dúvida o que se esperava da sociedade, a dizer, o caminho para uma secularização: todos os teóricos que falaram que a religião sucumbiria com o advento da ciência e da modernização estavam errados. Entretanto a consciência religiosa teve que se tornar reflexiva devido à Modernidade. Quanto ao proviso: será que o princípio de igualdade cívica não é violado quando nos referimos a ele e aos cidadãos religiosos (pelo fato de eles terem que se adaptar em um meio secular institucionalizado)? Habermas acha que a obrigação do proviso é excessiva. Para Habermas, a razão humana comum está entre o naturalismo e a religião.

Temos algo a aprender com as doutrinas religiosas, mesmo que elas soem como dogmáticas: não precisamos nos converter para a fé do outro, mas podemos usar seus valores semânticos como algo inspirador para a democracia. O Estado não pode dar preferência ao religioso e à religião, mas o contraponto é que ele parece adotar políticas secularistas. Habermas admite intervenções religiosas não-traduzidas desde que elas não firam os valores humanos, traçando claramente as diferenças entre barbárie e civilização, e que seja reconhecida a possibilidade de tradução de tal argumento.


O princípio da separação entre Igreja e Estado obriga os políticos e funcionários no interior das instituições estatais a formular e a justificar as leis, as decisões judiciais, as ordens e medidas em uma linguagem acessível a todos os cidadãos. De outro lado, porém, na esfera pública política, cidadãos, partidos políticos e seus candidatos, organizações sociais, igrejas e outras comunidades religiosas não estão submetidos a uma reserva tão estrita (HABERMAS, 2007, p. 138).


As igrejas e comunidades religiosas desempenham funções importantes: o cidadão religioso tem que estar religiosamente convencido e motivado para o ato de justificação (com razões religiosamente aceitáveis), para que realmente possamos cobrar algo dele como cidadão. Outro problema que se coloca é que, da mesma forma que ele é motivado por uma linguagem religiosa, muitas vezes ele pode não encontrar termos equivalentes em uma linguagem política pública para realizar o proviso, quando tratamos de cidadãos que não encontram sentido na vida fora do campo da fé. É uma carga muito pesada para esse tipo de cidadão, com a autocensura do proviso, fazer a exigida tradução.


Um Estado não pode impor aos cidadãos, aos quais garante liberdade de religião, obrigações que não combinam com uma forma de existência religiosa- porquanto ele não pode exigir deles algo impossível (HABERMAS, 2007, p. 142).


Entretanto aqueles que ocupam cargos públicos políticos são obrigados a adotar a neutralidade no debate público: ela é institucional. O caráter secular do Estado não implicaria uma obrigação pessoal do “cidadão comum”, ainda mais aquele com a existência conduzida pela fé. O oposto poderia representar um ataque à identidade pessoal.

Jürgen Habermas, assim, compartilha um ideal de razão pública e do proviso com John Rawls, só que leva essas concepções para uma esfera mais formal, onde só contam os argumentos seculares.


Bibliografia:

HABERMAS, J. “Religião na esfera pública. Pressuposições cognitivas para o ‘Uso Público da Razão’ de cidadãos seculares e religiosos”. In: Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, pp. 129-167.


RAWLS, J. “A idéia de razão pública revista”. In: O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp.173-235.


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