quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

2 anos de blog

E não é que dia 14 de dezembro passou e eu esqueci que meu blog completava 2 aninhos?
Bem, acho que não me atrasei tanto assim, pois ainda estamos em 2009! Hehehe.
Vale lembrar que a ideia desse blog surgiu de um jornalzinho intitulado "JIN", de curto período de vida, mas de grandes esforços. Esse jornal foi, durante esse tempo - ou seja, em algum momento do meu então terceiro ano do ensino médio -, meio de expressão de alguns alunos da noite do Colégio Pedro II da Unidade Humaitá II. Era algo bem independente mesmo; e bem interessante também.
Bem, voltemos ao presente: 2009 foi um ano corrido na Uerj, muitos trabalhos, leituras, trabalhos, trabalhos, monitoria, provas e trabalhos haha. Entretanto foi um ano para reforçar mais ainda a vontade que tenho de continuar no caminho da filosofia.
Que em 2010, a filosofia e eu, mais uma vez, sejamos companheiros dessa incrível viagem que é a vida! Sem preconceitos e sempre com bom humor, é lógico. E nada de fanatismos ò.ó

Trago aqui, para encerrar o ano, um pequeno texto que trabalhei junto ao grupo de Ateliê de Filosofia e Infância da Uerj, grupo este que só me me proporcionou experiências maravilhosas. Talvez esse texto possa ser uma semente para muitas reflexões em 2010. Um feliz ano novo, parabéns ao blog (ele merece!) e que realizemos muitas coisas boas em 2010!



Resposta ao outro: a carícia
Joan-Carles Mélich

O outro, com quem alguém está desde o princípio, não é o resultado do meu conhecimento. Situa-se muito além do saber e do conhecer. O outro é rosto. O rosto não é metáfora, mas epifania. O rosto não significa nada, simplesmente se expressa.
O rosto é o que escapa permanentemente. O outro, como rosto, é a resistência ao poder imperialista do eu. Contemplo o rosto, escuto-o, porque o rosto fala. Escuto-o e não posso com ele, não posso absorvê-lo. O rosto está além do reconhecimento, porque não depende de minha liberdade. O rosto está desnudo, desprotegido. É frágil como uma criança, como um velho. É frágil como a viúva ou o mendigo. Está indefeso diante da arrogância e do poder da totalidade da consciência, da razão, da técnica, do eu. Mas em sua fragilidade, o rosto fala, me chama, me ordena, me manda. Sou seu refém. A relação com o outro, com o rosto, não é de conhecimento, de intencionalidade ou de saber. A relação com o outro é de entrada, de ética. É uma relação de responsabilidade. O rosto me ordena des-interessadamente.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Inclusão X Integração escolar


INCLUSÃO X INTEGRAÇÃO ESCOLAR: UMA ANÁLISE A PARTIR DA LDB

A partir dos artigos 58, 59 e 60 da LDB (CAPÍTULO V – DA EDUCAÇÃO ESPECIAL), levantaremos a temática da inclusão escolar, tentando distingui-la da integração, mostrando também alguns problemas para sua efetivação bem como a tendência que temos de inverter ou confundir esses dois conceitos, que são, fundamentalmente, diferentes.

De uma maneira geral, a grande preocupação dos artigos concentra-se no serviço oferecido aos alunos portadores de necessidades especiais, quando esse é necessário. É destacada a importância de se oferecer um apoio especializado quando o aluno com necessidades encontra-se à margem do processo educativo, tornando o programa pedagógico flexível ao determinado aluno. Segue-se o referido artigo 58 de uma forma sintética, para que tenhamos uma visão global do capítulo específico da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: (Art. 58.) Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.

Segundo, o conceito de inclusão exposto pela professora Maria Teresa Égler Mantoan, consideramos esse artigo como enunciador de uma política de integração em contraposição a uma política inclusiva, que abrange a totalidade do alunado e que, a nosso ver, corresponde a uma verdadeira transformação da educação, pois

A inclusão questiona não somente as políticas e a organização da educação especial e da regular, mas também o próprio conceito de integração. Ela é incompatível com a integração, já que prevê a inserção escolar de forma radical, completa e sistemática. Todos os alunos, sem exceção, devem frequentar as salas de aula do ensino regular [1].

A integração, que a nosso ver é parcial, assegura os direitos que o aluno “superdotado” possui, mas também o segrega, pois é apenas uma modalidade de educação escolar, e não a educação como um todo. Tal integração proposta pela LDB deve começar desde a primeira infância, como meio essencial para um acesso igualitário de oportunidades, visando um pleno desenvolvimento do aluno dentro de suas possibilidades. Para isso, a instituição educacional precisa de profissionais qualificados, que serão os agentes que concretizarão tais políticas. Um problema que surge, porém, é a questão da especialização, que, dentro de políticas de integração, transforma esse agente no único realmente apto a trabalhar com crianças com determinadas necessidades.

Pensamos na limitação proporcionada pela educação especial, mas também enxergamos seus pontos positivos, pois almejar uma transformação total na educação é um projeto ambicioso e demorado. A integração, portanto, representa uma ação mais rápida e tranquilizadora; normativa. Porém, tende a manter seu quadro estático, pois segrega e, de várias maneiras, categoriza o ser humano em “diferente” e “não-diferente”. Quadro esse que, de um ponto de vista do todo social, é bastante notável. Frequentemente atribui-se tais problemas à própria distorção dos termos tratados em nosso pequeno trabalho:

Tendemos, pela distorção/redução de uma ideia, a nos desviar dos desafios de uma mudança efetiva de nossos propósitos e de nossas práticas. A indiferenciação entre o processo de integração e o de inclusão escolar é prova dessa tendência na educação e está reforçando a vigência do paradigma tradicional de serviços educacionais. [2]

De acordo com Mantoan, a emergência da educação especial como “solução” para os problemas educacionais, tanto os de infraestrutura como os relativos às equipes pedagógicas, torna-se marcante devido “à imprecisão dos textos legais que fundamentam nossos planos e nossas propostas educacionais”. [3]

A neutralização da diferença pelo isolamento dessa diferença é o aspecto negativo de políticas que visam uma integração, que acreditamos ser um forte empreendimento da LDB. A inclusão, por sua vez, necessita de uma análise mais profunda, de um empreendimento maior, de uma vontade maior e de um empenho maior. Entretanto, para que isso se efetive, milhões dos cofres públicos serão necessários. O ideal inclusivo é realizável, mas requer meios para que possamos começar a transformar a sociedade de alguma maneira. E uma das maneiras mais poderosas de transformá-la é através da educação.

BIBLIOGRAFIA:

MANTOAN, Maria Teresa Égler. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer?. 2. Ed. São Paulo: Moderna, 2006

-Consulta à Lei Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996 – LDB – Capítulo V – DA EDUCAÇÃO ESPECIAL


[1] MANTOAN, Maria Teresa Égler. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer?. 2. Ed. São Paulo: Moderna, 2006. p. 19.

[2] Ibid. p. 17.

[3] Ibid. p. 26.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

INTELIGÊNCIA E INTUIÇÃO EM HENRI BERGSON


Há pelo menos uma realidade que todos apreendemos por dentro, por intuição e não por mera análise. É nossa própria pessoa em seu escoamento através do tempo. É nosso eu que dura. Podemos não simpatizar intelectualmente, ou antes, espiritualmente, com nenhuma outra coisa. Mas certamente simpatizamos com nós mesmos.[1]

O CONCEITO E O OBJETO CONCRETO: CAMINHOS DA INTELIGÊNCIA E DA INTUIÇÃO EM HENRI BERGSON

Pretendemos, no presente trabalho, fazer uma distinção entre inteligência (ou análise) e intuição, trazendo, à luz da filosofia de Henri Bergson, as implicações de tais métodos. Caberá evidenciarmos, se possível, a diferença capital entre seus respectivos produtos: a construção do conceito – obra da análise – e a experiência do objeto concreto, da duração – através de um ato simples, que é a intuição. Através dessas distinções buscaremos exaltar o sentido que o filósofo confere à metafísica, bem como sua visão acerca da filosofia. A essência da filosofia, para Bergson, é o espírito da simplicidade, pois sempre verificamos que a complicação é superficial, a construção um acessório, a síntese uma aparência. Como exemplificação, traremos a questão proposta pelo paradoxo de Zenão de Eléia e a posterior crítica bergsoniana.

Segundo Bergson, existem duas maneiras, profundamente diferentes, de se conhecer uma coisa. Elas se traduzem num conhecimento relativo e num conhecimento absoluto. Na primeira, de maneira ilustrativa, nós conhecemos o objeto através de perspectivas que adotamos em relação ao mesmo, ou seja, nós o conhecemos “dando voltas ao redor dele”. Na segunda, nós penetramos, mergulhamos no objeto mesmo: essa última experiência foge aos símbolos, pois estes são necessidades de uma perspectiva que se dá no exterior, constituindo pontos de vista. A intuição, portanto, permite a apreensão do absoluto, uma vez que não tem como base uma determinada perspectiva, e sim a apreensão do objeto em sua intimidade:

Uma representação tomada de um certo ponto de vista, uma tradução feita com certos símbolos permanecem sempre imperfeitas em comparação com o objeto do qual a vista foi tomada ou que os símbolos procuram exprimir. Mas o absoluto é perfeito na medida em que ele é perfeitamente aquilo que ele é. [2]

Para Bergson a realidade concreta, a realidade desprovida de seus símbolos e das leis que impomos a ela, é a duração: contínua mudança qualitativa, um puro tornar-se, a trama mesma do devir da consciência, apreensível somente pela intuição. Faz-se importante, então, a distinção entre análise e intuição para que compreendamos esse aspecto do pensamento de Bergson. A inteligência, ao elaborar conceitos e ao trabalhar analiticamente, fragmenta, espacializa e fixa a realidade. Por outro lado, Bergson reconhece que essa forma de atividade intelectual, marca de um “eu superficial”, possibilita a ciência e a própria sobrevivência. [3] Guiado por uma índole pragmática, por estabelecer somente relações entre características gerais dos objetos, “o conceito deixa escapar a natureza mesma do objeto” [4]. Isso significa, e atestamos isso na história da filosofia, que a fragmentação do qualitativo em quantitativo possui pretensões de alçar-se a um conhecimento absoluto, mas que nunca irá atingi-lo, pois o método para se chegar ao absoluto é outro:

Chamamos aqui de intuição a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único e, por conseguinte, inexprimível. Pelo contrário, a análise é a operação que reconduz o objeto a elementos já conhecidos, isto é, a elementos comuns a esse objeto e a outros. Analisar consiste portanto em exprimir uma coisa em função daquilo que não ela. [5]

Enquanto a inteligência prende-se a interesses práticos, a intuição os ultrapassa visando uma compreensão profunda da duração, saindo, assim, da superficialidade. A preocupação da inteligência encontra-se no campo das ações, uma vez que a memória é ativada em função do sensório-motor, devido a nossa inserção no mundo da matéria, que deve ser feita de forma eficaz. “Ao traduzir o real em uma linguagem simbólica e abstrata, [a inteligência] inventa meios e artefatos que garantam a economia e o progresso ininterrupto do ser humano na labuta do mundo material” [6].

A intuição não pode se confundir com a inteligência e muito menos com o instinto. Esse último é marcado por uma repetição, visando também a solução de um problema, no momento imediato, enquanto a inteligência também pode se distanciar ou se antecipar para agir, mediante a contemplação das “formas” e de suas relações, pretendendo fazer previsões do futuro. Para Bergson, a intuição é um instinto que se tornou desinteressado, consciente de si, capaz de tomar seu objeto e ampliá-lo indefinidamente. A filosofia, por sua vez, estava seguindo um caminho no qual lhe faltava precisão, pois se distanciava muito da realidade vivida. Bergson sente a necessidade de ultrapassá-lo para empreender um meio distinto de apreensão da realidade. [7] Uma das correntes combatidas por Bergson, e dominante na época, é a ciência positiva, que reduz o real ao método das ciências da natureza, ou seja, à análise. A análise é um hábito e a inteligência também o é.

“Analisaremos”, aqui, o paradoxo da flecha, formulado por Zenão de Eléia e faremos uma crítica à luz da tese de Bergson acerca da fragmentação da realidade concreta causada pela análise. Essa realidade que está em jogo é movimento. O argumento de Zenão pretende que a flecha, em seu voo, esteja imóvel, baseando-se em uma concepção de tempo composto por instantes. A flecha percorre uma trajetória, ocupando, a cada instante, determinados espaços: a força do paradoxo está na ideia de que uma coisa está sempre em repouso quando ocupa um lugar idêntico a si mesma. Daí, segundo Zenão, segue-se que o movimento é uma ilusão dos sentidos, pois aceitá-lo seria uma contradição, uma vez que repouso e movimento são categorias claramente distintas. O movimento seria uma construção – no caso, da visão – que representa uma síntese dos sucessivos repousos, nos dando essa específica sensação. A dialética de Zenão, ilustrada pelos seus paradoxos, nos indica uma cisão entre logos e realidade, contra a percepção, que é desvalorizada.

Para Bergson, a inteligência despedaça a duração – no caso o movimento da flecha –, pois, ao fixar a sua trajetória em estágios, ela deixa escapar o próprio movimento, espacializa o devir, e, assim, o nega. Entretanto, para o filósofo é a intuição que deve apreender a duração, pois “ela apreende uma sucessão que não é justaposição, um crescimento por dentro, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que penetra no futuro”. [8] Bergson, então, coloca-se criticamente diante da metafísica:

Por isso, a metafísica – que não deve ser vista como mero jogo de ideias abstratas, mas como “ocupação séria do espírito” – teria na intuição seu método adequado. Bergson reconhece que os conceitos são indispensáveis à metafísica, na medida em que esta não pode dispensar as outras ciências, que todas trabalham com conceitos; mas reconhecem também que a metafísica só é propriamente ela enquanto se liberta dos conceitos já prontos e consagrados pelo hábito, para criar “representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldar pelas formas fugidias da intuição”.[9]

Bibliografia:

BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 179.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo; tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

MACIEL Jr., Auterives. O TODO ABERTO: Tempo e subjetividade em Henri Bergson. Rio de Janeiro, UERJ, Departamento de filosofia, 1997, 159 fls. Mimeo. Dissertação de mestrado em filosofia.


[1] BERGSON, Henri. Introdução a metafísica. In: O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 188.

[2]Ibid. p. 186.

[3] BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 179. p. X.

[4] Ibid. p. X.

[5]BERGSON, Henri. Introdução a metafísica. In: O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 187.

[6] MACIEL Jr., Auterives. O TODO ABERTO: Tempo e subjetividade em Henri Bergson. Rio de Janeiro, UERJ, Departamento do filosofia, 1997, 159 fls. Mimeo. Dissertação de mestrado em filosofia. p. 67.

[7] Ibid. p. 76.

[8] BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 114.

[9] BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 179. p. XII.

O CONCEITO DE RECONHECIMENTO


O CONCEITO DE RECONHECIMENTO NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO: UMA ANÁLISE DOS §§ 178-184

“A consciência-de-si é em si e para si e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido”[1]

Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito, abordará o conceito de reconhecimento como etapa fundamental da formação do espírito e do desenvolvimento da consciência, colocando o papel de uma outra consciência - o outro - como capital para que esse processo aconteça efetivamente. Num primeiro momento nós ignoramos que “a consciência se acha numa outra”, pois temos a tendência de achar que é nela mesma que ela se encontrará. Nós ignoramos um aspecto de alienação, de estranhamento, pois ela encontra ela mesma em um lugar que não é o seu próprio. Hegel, assim, coloca-se contra as correntes filosóficas que sustentam o solipsismo, pois, afirmando que a consciência se encontrará num lugar que não é o dela, empreende uma viagem para fora de si como condição essencial para o autoconhecimento. Este, por sua vez, se dá pelo reconhecimento.

Eis o conflito interno de cada sujeito entre o desejo por si mesmo e o desejo pelo outro, como necessidade de reconhecimento inerente a todo ser humano, em virtude do qual cada eu aspira a ser reconhecido por outrem assim como também aspira à sua destruição:[2]

A consciência não permanece durante muito tempo, como uma cativa, no reino das leis, por ela fundado. Opõe-se-lhe em breve e, neste frente a frente, ganha a certeza de si própria e acede à consciência de si. A consciência volta-se então para os objetos exteriores, no desejo, e destroi-os apropriando-se deles, na saciedade do desejo.[3]

Esse caminho que começa a se delinear é o da autoconsciência, no qual a consciência começa a entender o que ela é. Hegel exalta o seu caráter de apropriação, no qual o outro é visto como um objeto de desejo: um meio para o fim. Nesse momento a consciência quer fazer tudo depender de si; ela tenta excluir a alteridade independente de si, seguindo seu apetite. Entretanto, o outro passará de não essencial para capital, pois essa consciência irá se confrontar com outras consciências e atestará, empiricamente, que seus desejos não podem ser satisfeitos a todo o momento: a outra consciência é um objeto com vontade própria e que, mais ainda, pode fazer com a primeira consciência tudo o que essa faz com aquela. O outro oferecerá resistência e será capaz de fazer coisas que nenhum outro objeto faria.

A consciência, de certa maneira, sonha que pode conseguir o que deseja no aqui e no agora, considerando-se prioritária no seu reencontro. Evidencia, assim, sua tendência egoísta em seu desejo de auto-afirmação. No final das contas, o que a consciência deseja é um retorno a si mesma, mas, tão logo entra em choque com o mundo, percebe que esse reencontro é mediato. A consciência quer arrancar do outro a visão que ela tem dela, ou seja, a consciência quer ser objetivamente configurada: só assim a sua própria certeza será verdade. Tudo o que a consciência quer é se totalizar; para isso, precisa do reconhecimento do outro, que é um diferente, mas ao mesmo tempo um igual: o reconhecimento só será reconhecimento se for feito por um outro igual.

Segundo Kojève “o homem, sendo livre e autônomo, reconhece que os outros são igualmente livres e autônomos. E, de modo inverso, ele só é livre e autônomo se for livremente reconhecido como tal pelos outros” [4]: nessa passagem, torna-se clara, a importância dada ao papel do outro para o reconhecimento do mesmo. O outro é condição de autodescoberta. Hegel quer destacar que o outro é figura capital, ou seja, integralmente importante no autoconhecimento: as ações começam no eu, passam pelos outros e voltam para o eu (refluxo). O movimento próprio do Espírito é o “movimento do refletir-se em si mesmo”: há três momentos; um do ser em si; o outro do ser “fora de si” ou “ser outro” e um terceiro que é o do “retorno a si” ou “ser em si e para si.”

As consciências que entram em cho que, porém, ainda não tomaram consciência de que são uma para a outra. Entretanto, o passar para o próximo estágio desabrochará no reconhecimento de que o outro é autônomo e livre: para tal, como dito anteriormente, ele tem que ser reconhecido como livre e autônomo por outra consciência livre e autônoma. Segundo Hegel:

Esse suprassumir de sentido duplo do seu ser-Outro de duplo sentido é também um retorno, de duplo sentido, a si mesma; portanto, em primeiro lugar a consciência retorna a si mesma mediante esse suprassumir, pois se torna de novo igual a si mesma mediante essa suprassumir do seu ser-Outro; segundo, restitui também a ela mesma a outra consciência-de-si, já que era para si no Outro. Suprassume esse seu ser no Outro, e deixa o Outro livre, de novo.[5]

O movimento do reconhecimento acontece quando, não mais a consciência é clara para ela mesma, mas sim quando o é em relação a um outro. A consciência jamais será consciência se não for reconhecida como tal. O reconhecimento constitui, assim, uma unidade na duplicidade, pois representa uma dialética entre identidade e alteridade, na qual a aceitação também se revela importante. Em contraposição a uma unidade imediata (cartesiana), que representa uma dedução da consciência-de-si, Hegel faz do elemento diferença uma condição para que tenhamos um reconhecimento e um autoconhecimento verdadeiros:

O duplo sentido do diferente reside na [própria] essência da consciência-de-si: [pois tem a essência] de ser finita, ou de ser imediatamente o contrário da determinidade na qual foi posta. O desdobramento do conceito dessa unidade espiritual, em sua duplicação, nos apresenta o movimento do reconhecimento.[6]

Para Hegel, a consciência de si não é uma identidade imediata dada por uma intuição intelectual, e sim um retorno no qual passamos pelo outro, num movimento duplo, pois o outro também se autoconhece. O reconhecimento depende da identidade, só que mais ainda do contrário da identidade, ou seja, da alteridade. Não há uma essência se não existir outra.

Assim, Hegel estabelece que, para que tenhamos um reconhecimento, temos que fazer abstração do ser-para-si: sair dele e ir para o outro, numa espécie de apropriação do outro pelo mesmo e de dissolução da identidade na alteridade. A consciência só pode ser concluída plenamente após entrar numa luta de vida ou morte, ou de dominação ou servidão, na qual será reconhecida em sua condição. Não adentraremos nessa complexa temática, mas cabe ressaltar que os conceitos de dominação e servidão são trabalhados em um sentido amplo, com pretensões de aplicabilidade a todos os momentos, e não só aqueles que marcaram, definitivamente, a história da humanidade.

BILIOGRAFIA:

D’HONDT, Jacques. Hegel. Tradução de Emília Piedade. Lisboa: Edições 70, 1984

Dicionário de Obras Filosóficas/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [Verbete: Fenomenolgia do Espírito, pp. 226-229].

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002.

KOJÈVE, Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora da Universidade do Rio de Janeiro, 2002, pp. 49-54.

REALE, G. & ANTISERI, D. - História da Filosofia: Do Romantismo até nossos dias, Vol III, 3ª Edição. São Paulo: Paulus, 1990, pp. 111-119.


[1] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002. p. 142.

[2] Dicionário de Obras Filosóficas/ Diretor da publicação Denis Huisman. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [Verbete: Fenomenolgia do Espírito, pp. 226-229].

[3] D’HONDT, Jacques. Hegel. Tradução de Emília Piedade. Lisboa: Edições 70, 1984. p. 36

[4] KOJÈVE, Alexandre. Introdução à Leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora da Universidade do Rio de Janeiro, 2002, p. 50.

[5] HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes; com a colaboração de Karl-Heing Efken, e José Nogueira Machado. – 7. ed. rev. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002. p.143

[6]Ibid.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

VELHA HISTÓRIA (Mario Quintana)


VELHA HISTÓRIA

Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho. Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena.

E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o peixinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis.

Aonde o homem ia, o peixinho acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés.

Como era tocante vê-los no "17"! - O homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara fumegante de moca, com a outra lendo jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava uma laranjada com um canudinho especial...

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:

-Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste...

Dito isso, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho na água. E a água fez um redemoinho, que depois foi serenando, serenando...até que o peixinho morreu afogado.

(Mario Quintana, 1976, p. 105)

http://www.youtube.com/watch?v=yPCmTfBk-yA&feature=related

sábado, 5 de dezembro de 2009

A Imaginação: uma pequena nota


A Imaginação: uma pequena nota

“A imaginação não é como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade, é uma faculdade de sobre-humanidade.” (Bachelard – A Água e os Sonhos)

Gaston Bachelard, já seduzido pela imaginação, traz para a reflexão estética uma nova concepção de imaginação, influenciada por correntes que reagiram ao Iluminismo Francês, como o Romantismo Alemão. Na filosofia tradicional, sobretudo sob uma perspectiva epistemológica, a imaginação é apenas produto da percepção, constituindo uma fonte de erro e ilusão.

Entretanto, com um enfoque estético, Bachelard não considera essa “imaginação reprodutora” como imaginação, pois a verdadeira imaginação (a criadora) traz, ao real, novas realidades; ela é deformadora, nos eleva num voo ascencional, no instante.

A originalidade de Bachelard é a autonomia que concede ao simbólico: uma vez que a imagem emerge, ela já não nos pertence; ela é um novo ser.

O Psicanalista e a Imagem


O Psicanalista e a Imagem

O psicanalista deixa o estudo ontológico da imagem; ele aprofunda a história de um homem; vê, mostra os sofrimentos secretos do poeta. Explica a flor pelo estrume.” (Bachelard – A Terra e os Devaneios da Vontade)

É importante salientar que os interesses de Bachelard, nos seus estudos sobre a imaginação, fogem do exclusivo campo da terapêutica. No caso da passagem citada, Bachelard faz uma crítica à psicanálise, pois essa ignora a autonomia do simbolismo. O psicanalista intelectualiza a imagem, deixando o estudo “dela nela mesma” para empreender a busca de suas causas, ou seja, buscando todo um passado que talvez a tenha gerado.

No caso de uma crítica literária ou de uma crítica artística, isso representaria um trabalho que não se comprometeria com a novidade, pois a imagem e sua vivência, no momento que a apreendêssemos, não seria o eixo de tal crítica. Para Bachelard, nós temos que viver a imagem e não psicanalisá-la: não devemos buscar o que está por de trás dela, devemos ignorar suas causas (se elas possuírem) e apreendê-la em sua totalidade, ignorando seu antes e seu depois, vivendo sua ontologia no seu tempo característico: o do instante.

O Progresso Descontínuo da Ciência


O Progresso Descontínuo da Ciência

A noção de progresso descontínuo da ciência, de Gaston Bachelard, evidencia, antes de tudo, o empreendimento da busca de uma epistemologia que possa expressar, adequadamente, a ciência de sua época. Essa ciência, marcada pela ruptura de Einstein com Newton, é novidade. Logo, uma epistemologia atenta às rupturas é necessária, juntamente com uma história julgada (que é a história das ciências). A noção de progresso descontínuo da ciência, portanto, torna-se capital.

“Não há, portanto, transição entre o sistema de Newton e o sistema de Einstein”. Essa afirmação de Bachelard traz uma concepção de descontinuidade, pois coloca que não há como deduzir, a partir da mecânica newtoniana, a teoria einsteiniana. Essa última subverteu os princípios da primeira, recusando noções fundamentais que representavam a base do sistema anterior. A mecânica clássica explicava muitos fenômenos, sendo que o caráter observativo era exaltado (primeira ordem de aproximação: da experiência para o racional).

A teoria da relatividade representou uma segunda ordem de aproximação: do racional para o real. Isso porque o caráter matemático e “indutivo” (inventivo) possibilitou a compreensão de fenômenos não alcançados pelas explicações da teoria newtoniana. O objeto da ciência passou a ser um objeto criado por uma matemática inventiva, que se encontrava no campo da probabilidade: esse objeto não era visível, como é o caso do corpúsculo, mas sim uma espécie de ente criado pela ciência.

Bachelard, vivendo as novidades da ciência, diz que o sistema de Newton era fechado e que só se poderia sair dele por arrombamento, ou seja, rompendo com os princípios, exaltando, assim, a descontinuidade. Enquanto que, para Newton, o tempo é absoluto, para Einstein o tempo é relativo: ele nos traz o conceito de tempo atrelado a coordenadas experimentais, num verdadeiro entrelaçamento entre razão e experiência. Para Bachelard, o progresso da ciência não acontece por acúmulo de conhecimento, mas sim pela polêmica que envolve os conceitos fundamentais da teoria anterior, o que torna a antiga teoria um caso particular da nova. A última teoria é mais abrangente e aproxima-se mais do real (não em um sentido realista) constituindo, assim, uma surracionalidade.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Meninos de rua?




MENINOS DE RUA?

Eixos de comparação entre os seguintes artigos:

VIANNA, Adriana. Internação e domesticidade: caminhos para a gestão da infância na primeira república. In: GONDRA, J. (org.). História, infância e escolarização. RJ: 7 Letras, 2002.

ALVIM, Rosilene. Meninos de rua e criminalidade: usos e abusos de uma categoria. In: ALVIM, R. Candelária 93: um caso limite de violência social. NEPI/LPS/IFCS/UFRJ, 1993.

A temática tratada por ambos os artigos, dentre seus muitos aspectos, pode se concentrar na tríade infância-trabalho-criminalidade. Os textos trabalhados evidenciam o limiar no qual, crianças e jovens, se encontram quando estão nas ruas (por escolha ou não): entre o trabalho – árduo, informal, encarado a princípio como algo que dignifica, que engrandece, que o torna adulto e independente – e o crime – que será a grande “oferta” para esses meninos, sendo encarado, em muitos casos, também como trabalho.

Casa e rua. Onde se encontram os domínios da criminalidade e seus desdobramentos na vida da criança são questões centrais, pois, uma vez que mediante a convivência familiar no lar (que poderá ser pacífica ou violenta, além de satisfatória ou precária), teremos o elemento capital para a decisão do abandono familiar por parte da mesma. Porém,

[...] Existe algo mais que está além das quatro paredes de suas casas, o que os cerca é um quadro social de exclusão no qual não veem possibilidades de futuro. Viver nas ruas é também uma recusa em aceitar passivamente a perspectiva que circunda suas vidas na família e no bairro. Com isto não estou afirmando que a rua possa oferecer um futuro ou apresentar nova perspectiva de inserção social [...]. No entanto, vir para as ruas depois de um processo vivido por etapas, significa, na maior parte dos casos, uma esperança.

(ALVIM, 1993, pp. 22-23)

Juntamente com a concepção de que a família é um refúgio, temos a ideia de trabalho como algo enobrecedor. Tais concepções resultam no desenvolvimento de determinadas políticas que visam à inclusão de jovens abandonados ou, segundo a explorada terminologia, os ditos “meninos de rua” que, por sua vez, são vistos como perigos em potencial por estarem expostos à criminalidade. Ou seja, muito mais de estarem em perigo: os jovens podem, também, ser perigosos.

Essas “soluções” postulam que o trabalho será um caminho para a normalização do jovem na sociedade, mas seus problemas são inúmeros: em primeiro lugar, como a maioria das políticas que atingem especificamente algum núcleo da sociedade, não há um englobamento de todos que necessitariam de tal serviço; não há uma fiscalização efetiva; a burocracia que envolve a tomada de decisões é desestimuladora; as instituições responsáveis por tal empreendimento permitem a coexistência de agentes que abusam de sua autoridade; e contamos também com a rebeldia de muitos jovens que resistem a tais medidas.

As medidas as quais nos referimos constituem o que chamamos, de acordo com a política da Primeira República, de um programa de “gestão de infâncias consideradas ‘incorretas’”. Menores eram recolhidos e enviados ao Juizado nesse corpo de medidas que se fez notar entre os anos de 1910 e final da década de vinte. Os menores tinham, a princípio, dois destinos justapostos ilustrados pelas instituições a seguir:

A Escola Premonitória Quinze de Novembro e a Colônia Correcional de Dois Rios. Enquanto a primeira propunha-se a ser um centro modelar na transformação dos menores recolhidos em “cidadãos úteis a si e aos outros”, nos dizeres de seu diretor, Franco Vaz, a segunda obedecia basicamente ao perfil de uma instituição de detenção e internação de criminosos. No caso dos menores para lá enviados, porém, não havia qualquer condenação formalmente estabelecida, sendo para eles reservada uma rubrica (a de menores) distinta da indicada para os criminosos adultos, que seguiam classificados como reservados ou sentenciados.

(VIANNA, 2002, p. 30)

Entretanto, havia uma terceira possibilidade: o alocamento de jovens em casas de terceiros. Aí o jovem desempenharia funções cotidianas e, notadamente no caso específico de meninas, trabalharia na casa de seus tutores. Notamos também o forte laço entre trabalho-casa, pois o intuito dessa medida, através do trabalho, da proteção e supervisão de uma família, era o de libertar o jovem de sua quase “determinação”, segundo seus idealizadores. O cenário, porém, não era um dos melhores: os ditos “vadios” (entre outros termos, que evidenciam o problema da terminologia) não se adaptavam sempre à família, que nem sempre os tratavam bem. Em consequência, fugiam de casa. A rua, então, seria um novo abrigo caso conseguissem, mais do que da família, fugir do sistema.

Mas poderia a rua dar esse suporte que antes era dado por sua família (ou pseudofamília)? Aqueles que mal foram contemplados por programa algum saberiam, mesmo que não por completo, nos dar uma resposta. Tachados, espacialmente, como um único grupo, os “meninos de rua” são enxergados com um afiado determinismo, que advém de todos os aspectos negativos que atribuímos ao meio em que vivem. Reside aí o problema da generalização, pois ignoramos os fatos que poderiam tê-lo levado a “ser de rua”, sendo o abandono apenas um deles. Assim, a rua poderia, abrindo o leque de possibilidades, ser apenas um local de trabalho (e assim designá-lo como um “menino na rua” e não “da rua”). Entretanto, uma vez a rua sendo também moradia, teremos um verdadeiro entrelaçamento entre público e privado. Uma confusão de limites estará sendo estabelecida.

Muitas crianças e jovens marginalizados, e coisificados pela sociedade, procuram o trabalho, mas logo ascendem à esfera criminal. Não por desejarem, mas como escolha na qual um fim qualquer será mais facilmente atingido: o crime passa, assim, a ser uma espécie de trabalho ou, propriamente, “o” trabalho. Enxergamos explicitamente essa questão no suposto depoimento de Marcelo Cândido de Jesus (“o Careca” - 14 anos), uma das oito vítimas do massacre da Candelária, que teria dito ainda em vida: “o que mais me aborrecia era não ter roupas para ir às festas. Vou ficar rico, nem que para isto eu tenha que dar um grande golpe. Vou ganhar dinheiro e ficar rico, para dar presentes à minha mãe[1]. Outra vítima, Anderson de Oliveira Pereira (“o Caolho” – 13 anos) provavelmente teria dito, segundo depoimentos, ao se revoltar contra PMs que o exploravam: “Então para que trabalhar? Agora, se eles acharem que o dinheiro é roubado, vão estar com a razão. Eu sei que nunca vou sair da rua[2]. Tais depoimentos nos evidenciam sonhos, mas tristes perspectivas.

Segundo Alvim “a rua tem para os meninos esse lado de aventura marcada pelo perigo” [3], o que nos faz, antes de buscar culpados, refletir sobre o real papel do Estado e da sociedade. Afinal, com muito trabalho, podemos sim reverter essa situação encarada como determinista, mas, como enfatizo, a mobilização tem que ser geral: educação, saúde, trabalho, dentre outras, devem atuar conjuntamente para buscar a solução para formar uma solução maior para esse grande problema. Caso contrário, estaremos caminhando para um novo massacre – não necessariamente o da Candelária – mas aquele que vemos todos os dias nos noticiários, nos jornais e que é lento, mas evidente: o massacre da população carente, brasileira.


[1] ALVIM, Rosilene. Meninos de rua e criminalidade: usos e abusos de uma categoria. In: ALVIM, R. Candelária 93: um caso limite de violência social. NEPI/LPS/IFCS/UFRJ, 1993. p.17

[2] Ibid. p. 21.

[3] Ibid. p. 23