Questão Educacional Brasileira: Uma História
O papel desempenhado pelas instituições educacionais é de suma importância para o processo de socialização, porém, muitas vezes, esse papel é contraditório. A educação prepara os jovens para assumir diferentes posições sociais, ocupacionais e profissionais, reafirmando, assim, a problemática educacional existente. No caso brasileiro encontramos uma política educacional com traços específicos. Uma restrospectiva histórica acerca da realidade do sistema educacional brasileiro é necessária para entender seus reflexos nos dias atuais. É interessante notar que nessa periodização evidencia-se que economia e educação possuem relações estreitas: o primeiro momento abrange o Período Colonial, o Império e a I República (1500-1930, modelo agroexportador), o segundo período vai de 1930 a 1960 (correspondendo ao modelo de substituição das importações) e o terceiro vai de 1960 aos nossos dias (que corresponde, assim, ao período da internacionalização do mercado interno). Nós analisaremos os dois primeiros.
A importância de se conhecer os devidos períodos se traduz em enxergar a organização da economia e a especifidade da formação social brasileira como um todo. No
primeiro momento a economia é caracterizada por um modelo de agroexportação, sendo que uma política educacional estatal é quase que inexistente. Não havia função, não havia importância no papel da educação, pois a qualificação para a monocultura latifundiária, assim como a diversificação da força de trabalho, era mínima. Restaram, então, funções ideológicas (porém que já eram muito bem asseguradas pelos meios de produção): a reprodução das relações de dominação e a de reprodução da ideologia dominante, funções estas desempenhadas pelas escolas de jesuítas, que asseguravam a reprodução da sociedade escravocrata e do poder da Igreja. A educação deve ser entendida, aqui, como uma arma pacífica que visava a manutenção das relações de produção implantadas desde a colônia e que pouco mudaram durante o Império e a I República. Enquanto não havia necessidade de qualificação da força de trabalho, notamos que a política educacional pouco mudava. Entretanto, com o fato da independência política, surge a necessidade da formação de quadros técnicos e administrativos novos, o que justifica o surgimento de escolas militares, de nível superior, ao longo do território nacional. O poder da Igreja, nesse período, devido ao fato de instituições de ensino não-confessionais estarem formando os quadros dirigentes, continua grande, mas começa a delinear seu futuro. No fim do Império e começo da República, uma política educacional estatal é embrionária e dá seus primeiros passos.
No
segundo momento, que abrande o período de 1930 a 1960, temos na fase de 1930-1945 as instituições da sociedade política se fortalecendo devido à importância que os aparelhos jurídico e repressivo do Estado adquiriram como mediadores do processo econômico (produção de café para o mercado internacional). A atuação do Estado se deu entre este mercado e os interesses dos cafeicultores paulistas. Com a crise mundial de 1929, mudanças estruturais aconteceram, caracterizando, assim, o modelo de substituição das importações, onde houve a restrição da importação de bens de consumo e, ao mesmo tempo, o fortalecimento da produção industrial brasileira (no início somente para suprir os bens de consumo restritos).
Com essa substituição, houve uma relativização do poder econômico dos cafeicultores e o aparecimento de outros grupos, como uma nova burguesia urbano-industrial. Uma nova situação resulta numa nova organização: os aparelhos repressivos do Estado são reorganizados. Em 1937, com a implantação do Estado Novo de Vargas, a sociedade política invade áreas da sociedade civil, inclusive a educação. Em 1930, um Ministério de Educação e Saúde é criado visando mudanças, como a estruturação de uma universidade (que se daria por uma fusão de instituições isoladas de ensino superior). Um grande marco da nova Constituição de 34 é a implantação da gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário, sendo o ensino religioso facultativo.
As mudanças macro-estruturais serão importantes para a refuncionalização do sistema escolar: o ensino profissionalizante é introduzido. Alegando a obrigação das indústrias em criar escolas de aprendizagem nas suas respectivas áreas, esse tipo de ensino estava previsto para as classes "menos privilegiadas", ou seja, os filhos de seus empregados. O que se enxerga é a busca por uma mão-de-obra semi-qualificada, mas de uma certa forma a educação continua representando um veículo de ascensão, embora possua suas contradições. A corrida para a criação de um "exército de trabalho", para o "bem da nação", nas palavras do então Ministro da Educação Gustavo Capanema, é deflagrada. O objetivo nada mais seria do que assegurar e consolidar as mudanças estruturais ocorridas tanto na infra como na superestrutura. E mais: a sociedade política firma-se no sistema educacional, enfraquecendo ainda mais a Igreja, e transformando-o em um "aparelho ideológico do Estado", visando a manipulação das classes subalternas. Antes elas eram excluídas do sistema educacional, mas agora é dada uma "chance" para os antes marginalizados. Porém essa via é falsa e se revela um beco sem saída.
A força de trabalho a ser recrutada manterá a configuração da sociedade de classes, já que a elite se preocupará em formar seus quadros dirigentes em escolas de elite e os setores médios e baixos da burguesia se preocuparão em ocupar as vagas do ensino propedêutico a fim de alcançar um título acadêmico (uma outra forma de ascensão). Restará, assim, a classe operária, semi ou desqualificada, que verá no ensino profissionalizante a sua única via de ascensão. Porém, aí encontra-se a dualidade: equivalendo ao nível médio, o ensino profissionalizante não prepara seus alunos a cursarem escolas de nível superior. Reproduzem-se, assim, a força de trabalho e uma sociedade de classes muito bem configurada. Em meio a esse cenário, as chances educacionais oferecidas pelas escolas técnicas "parecem" ter caráter de prêmio. Mas o que estão sendo assegurados são, na verdade, as condições para uma maior produtividade do setor industrial. Tudo isso financiado pelo Estado.
Na fase que vai de 1945 até o início dos anos 60 encontramos uma aceleração e diversificação no processo de substituição de importações, com a participação marcante do capital estrangeiro, que naquele momento não foi visto como um inimigo do projeto nacional-desenvolvimentista. Porém, ao longo dessa fase os conflitos irão se delinear. Haverá uma nova polarização: de um lado os setores populares, representados, até certo ponto, pelo Estado, e por alguns intelectuais de classe média; e de outro, um amálgama heterogêneo que compreendia grandes parcelas da classe média, da chamada burguesia nacional, do capital estrangeiro monopolista e das antigas oligarquias.
A política educacional reflete majestosamente a dualidade dos grupos no poder. A luta gira em torno, então, da Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e da Campanha da Escola Pública. Com a reorganização da economia brasileira no contexto internacional, as funções dadas à escola pelo Estado Novo não poderiam permanecer intactas. A Constituição de 46 havia fixado num dos seus parágrafos (Art. 5 XV, d) a necessidade da elaboração de novas leis e diretrizes para o ensino no Brasil, porém o texto definitivo de LDB só será sancionado em 1961 (remontando a 1948 o primeiro projeto-de-lei, encaminhado à Câmara pelo então Ministro da Educação, Clemente Mariani), tentando responder a certas ambições das classes subalternas. Entretanto a burguesia ainda era a "fração hegemônica" do "bloco no poder". As propostas, primeiro, a extensão da rede escolar gratuita (primário e secundário), segundo, criando a equivalência dos cursos de nível médio (inclusive o técnico), que, além de equiparados em termos formais, apresentam, nesse projeto, maior flexibilidade: permitem a transferência do aluno de um ramo de ensino para outro, mediante prova de adaptação. Esse projeto foi engavetado e retomado somente em 1957. Um novo projeto-de-lei conhecido pelo nome de "substitutivo Lacerda" (por ter sido apresentado pelo Deputado Carlos Lacerda) é encaminhado à Câmara. As "inovações" consistem em reduzir ao máximo o controle da sociedade política sobre a escola, restituindo-a, como instituição privada, à sociedade civil.
Essa colocação evidentemente esconde um interesse de classe. Aqui fala a fração que justamente quer excluir a classe operária de um possível mecanismo de ascensão (mesmo que simplesmente individual). Entretanto, que liberdade teriam os pais de um camponês, operário ou habitante de favela para escolher uma escola particular para seus filhos? Essa proposta, além de omitir o parágrafo da gratuidade do ensino no Brasil, era obviamente excludente. O resultado foi o "Manifesto dos Educadores", onde intelectuais, pedagogos e liberais protestaram, alertando o público e o governo sobre as implicações dessa proposta, como o financiamento da rede particular pelo Estado, porém sem o direito à fiscalização.
Dos muitos debates travados, resultou finalmente a Lei 4024 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ela é o compromisso entre as duas tendências expressas pelos dois projetos-de-lei (Mariani e Lacerda). Assim ela estabelece que tanto o setor público quanto o particular têm o direito de ministrar o ensino no Brasil em todos os níveis. Se dessa forma os setores privados viram assegurados os seus direitos triunfando parcialmente a proposta Lacerda, a lei também absorve elementos da proposta Mariani, como a equiparação dos cursos de nível médio e a flexibilidade de intercâmbio entre eles (Art.51). A LDB reflete, assim, as contradições e os conflitos que caracterizam as próprias frações de classe da burguesia brasileira. Apesar de ainda conter certos elementos populistas, essa lei não deixa de ter um caráter elitista. Ela, ao mesmo tempo que dissolve formalmente a dualidade anterior do ensino (cursos propedêuticos para as classes dominantes e profissionalizantes para as classes dominadas) pela equivalência e flexibilidade dos cursos de nível médio, cria nesse mesmo nível uma barreira quase que intransponível, assegurando ao setor privado a continuidade do controle do mesmo. Assim, a criança pobre, incapaz de pagar as taxas de escolarização cobradas pela rede, não pode seguir estudando.
(Escola, Estado e Sociedade/ Bárbara Freitag- 4. ed. rev. - São Paulo: Moraes. 1980.)
Afinal, a lei não deveria assegurar aos seus cidadãos uma sociedade justa?