quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O Erro e o Não-ser do Discurso no Sofista de Platão

O ERRO E O NÃO-SER DO DISCURSO NO SOFISTA DE PLATÃO: A BUSCA PELO SOFISTA DE CEM CABEÇAS

Vamos, vou dizer-te- e tu escuta e fixa o relato que ouviste-

quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar:

um que é, que não é para não ser,

é caminho de confiança (pois acompanha a realidade);

o outro que não é, que tem de não ser,

esse te indico ser caminho em tudo ignoto,

pois não poderás conhecer o não-ser, não é possível,

nem indicá-lo [...] [1]



Teeteto: Que queres dizer?

Estrangeiro: Que, para defender-nos, teremos de necessariamente discutir a tese de

nosso pai Parmênides e demonstrar, pela força de nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é; e que, por sua vez, o ser, de certa forma, não é.

Teeteto: Evidentemente, esse é o ponto que teremos de debater em nossa discussão.[2]

O Sofista de Platão é considerado o grande diálogo metafísico no qual o ponto de partida é a sede de captura do astucioso sofista, inimigo do filósofo, e a tentativa de sua definição. Entretanto, no decorrer do diálogo, fica clara a intenção de Platão: muito mais do que tentar buscar uma definição do seu inimigo (o seu ser que escapa entre os dedos quando parece que foi apanhado), o próprio campo da filosofia estará sendo traçado e uma escola filosófica, presente com uma força descomunal, colocada em destaque; a tradição de Parmênides de Eléia, o filósofo da ontópolis, é o alvo a ser refutado no decorrer de uma “análise do estatuto ontológico da imagem e na reconstrução positiva da ontologia” [3].

A sofística tem um estatuto ontológico muito próximo da imagem: para entender a natureza do sofista será preciso descobrir a natureza da imagem (aquilo que parece ser, mas não é), o que nos conduzirá ao problema da mimesis (a mimética, arte da imitação, uma brincadeira sábia e graciosa), obrigando-nos a aceitar a imagem como algo que, mesmo não sendo, é, ou seja, que possuí uma realidade. Outro ponto fundamental na construção da argumentação do Estrangeiro é o ataque ao próprio desdobramento que a doutrina de Parmênides causa no pensamento do sofista que, por sua vez, apresenta um perigo para Platão na medida em que pretende ensinar a arte política e a arete (a virtude) através de discursos sedutores e persuasivos que convencem multidões e caçam, principalmente, jovens ricos. Eis o pensamento de Parmênides e suas conseqüências:

Tudo o que é pensado, é: não é possível pensar o que não é. O pensamento é a medida do ser.

Resulta rigorosamente deste princípio, e os sofistas logo o perceberam, que o erro é impossível. ‘Nada é falso’, dizem Protágoras e Eutidemo, pois errar seria pensar ou dizer o que não é, isto é, não pensar nada ou não dizer nada [4]

Um hábil sofista é aquele que quando fala, faz ver. Entramos em contato, aqui, com a imagem falada. Essa imagem produzida pelo discurso dos mestres da retórica se insere no contexto acima, onde o não-ser não tem lugar no pensamento e no dizer, onde é impossível errar devido ao logos não divino, mas que decorre do exercício técnico da razão humana (muitas vezes também tomado como um relativismo) proposto pela sofística: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, ou seja, das coisas que nos são úteis e das quais nos servimos, como dito postulado por Protágoras de Abdera. Essa pedagogia, para Platão, estaria calcada na doxa (opinião), “pois, o que traz o sofista é uma falsa aparência de ciência universal, mas não a realidade” [5]. A arte sofística seria a produção e execução de “todas as coisas” através de uma única arte, a mimética, na qual seriam produzidas imitações da realidade- através de ficções verbais- que nos dariam a ilusão de que tudo o que é falado também é verdadeiro. Tal arte poderia manter as mesmas proporções da realidade (reprodução com “fidelidade”), eis a arte de copiar; caso as proporções não fossem mantidas, tal como um pintor que representa a realidade com proporções que nos dão ilusões, iríamos ao encontro da arte do simulacro: o homônimo do belo poderia passar-se como o verdadeiro belo (o belo em si).

Quando aplicado ao discurso a mimética convenceria multidões afirmando coisas que não são na realidade, mas que, de alguma forma, parecem ser e possuem uma aderência enorme; por isso não podemos excluir a sua realidade, mesmo que não existam de uma forma plena. O sofista afirma que tudo sabe e que tudo ensinará e, ainda por cima, em pouco tempo, o que se trataria de uma brincadeira ou jogo (paidia). Fazendo uso dessa arte, que se confunde entre a arte da cópia e do simulacro, o sofista cairia em mais uma possibilidade de definição, a saber, um ilusionista da episteme (da ordem do conhecimento e da ciência):

Estrangeiro: É que, realmente, jovem feliz, nos vemos frente a uma questão extremamente difícil; pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo sem, entretanto, dizer com verdade, são maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como sempre. Que modo encontrar, na realidade, para dizer ou pensar que o falso é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na contradição? Na verdade, Teeteto, a questão é de uma dificuldade extrema. [6]

Do problema do estatuto ontológico da imagem para a problemática do não-ser, o Estrangeiro afirmará, sob certas formas, que o não-ser é e que o ser não é, o que implicará o parricídio: a morte especulativa de Parmênides, o pai do eleatismo, para quem o ser é imóvel, imutável e totalmente oposto ao não-ser, que é impensável e jamais será. Para Parmênides, pensar é pensar alguma coisa, é pensar somente por uma única via (o ser e seu conhecimento): não há possibilidade de se pensar o nada (o não-ser). Entretanto, se o pensamento é a medida do ser, donde vem a possibilidade do erro? É a questão crucial que tem como resposta, segundo Victor Brochard, o maior esforço que o gênio de Platão pôde tentar para estabelecer definitivamente sua doutrina:

Se concordarmos que ele [o pensamento] erra uma única vez, que garantia restaria à ciência? E se negarmos o erro como Parmênides negava o não-ser, o sofista está aí a espreitar a ocasião e é a moral que está em perigo. Provar a existência do erro contra aqueles que a negam, enquanto o erro parece ser a negação do princípio sobre o qual repousa a ciência, eis o problema que Platão é forçado a resolver. [7]

Como fundamentar a realidade do não-ser? Como dizer que o não-ser seria? Platão levou em consideração a tese de Parmênides para depois mostrar que a distinção entre ser e não-ser não deve ser levada ao extremo como fez o antigo filósofo. “O sofista é um artesão de fantasmagorias e de erros” [8], mas podemos pensá-lo; se o sofista e o erro possuem realidade, o não-ser, de igual modo, também existe. “A dificuldade da questão advém do fato de que parece evidente que não se poderia pronunciar o que não-é, nem aplicar o não-ser aos seres ou a algo determinado” [9], porém, no momento em que pronunciamos “o não-ser” ou “os não-seres”, estamos atribuindo uma natureza numérica ao não-ser, transportando, assim, a unidade ou a pluralidade. Se tentássemos não nos servir do número para pronunciar ou conceber em pensamento o não-ser a razão falharia: não é possível tal feito, como atesta Platão. A tese do ser de Parmênides está sendo subvertida: se o não-ser de fato não existisse, como afirma o pré-socrático, nós não poderíamos pronunciá-lo e, nas falas do Estrangeiro, nem atribuir-lhe o número, que em sua totalidade é o ser (nesse aspecto notamos, principalmente, as influências da escola pitagórica no pensamento platônico).

Toda a teoria de Platão pode resumir-se nesta fórmula muito simples: só há erro no juízo. Não nos enganamos pensando tal ou tal coisa, mas enquanto concebemos uma coisa como existente, ou como unida a uma outra. O erro não está nas coisas unidas, mas na ligação entre elas. [10]

O sofista desenvolveu uma técnica que mistura coisas que são com coisas que não são, por isso, tanto por causa do seu discurso quanto pela busca de sua definição, somos levados a aceitar que o não-ser também é; é dado para o não-ser um valor ontológico que nos dá a possibilidade de pensar, pois para pensar o ente fazemos uso do não-ente. O não-ser é outro que o ser; ele não é, necessariamente, a negação completa do ser: pensá-lo é pensar a alteridade. A arte sofística produz uma realidade cujo estatuto é ambíguo, como uma imagem, mas não admite a possibilidade do discurso falso, o que se desdobra no grande empenho que Platão teve para distinguir a filosofia da sofística. A sofística, por sua vez, também toma o ser verdadeiro como não sendo: levando em consideração essa conjuntura, são os não-seres o que a opinião falsa concebe, conclui o Estrangeiro em seu raciocínio. O erro consiste não em pensar tudo o que é, mas em pensar outra coisa do que é; e muito mais do que o pano de fundo da atuação do sofista, da sua busca por jovens ricos e poder, esse é um risco que todos nós, fazendo uso do entendimento, podemos correr. Caberá, então, a busca por uma ciência, a dialética, que nos conduziria a um caminho traçado com paciência e cuidado, onde o foco seria evitar essa ilusão, que é da natureza do sofista. Feito isso, aquele que percorreu tal caminho, estaria apto a filosofar em toda pureza e justiça: o filósofo. O sofista esconde-se na obscuridade, o que torna sua busca extremamente complicada. Já o filósofo, apesar de não se esconder como seu opositor, não é mais fácil de ser encontrado, pois, segundo o Estrangeiro, os “olhos da alma vulgar não suportam, com persistência, a contemplação das coisas divinas."[11]

Bibliografia:

SANTOS, José Trindade. Parmênides, Da natureza, tradução, introdução e comentário. 1. ed. v. 1. São Paulo: Loyola, 2003.

Arêas, James Bastos. A instauração ontológica no Sofista de Platão. 196 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Rio de Janeiro, 1999.

Platão. Sofista. In: Diálogos/ Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa- 5. Ed.- São Paulo: Nova Cultural, 1991. [Coleção Os Pensadores]

Brochard, Victor. Capítulo II- Teoria de Platão. In: Do erro; tradução para o português Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Jean-Marie Breton.- Fortaleza: Ed UECE, 2006.



[1] SANTOS, José Trindade. Parmênides, Da natureza, tradução, introdução e comentário. 1. ed. v. 1. São Paulo: Loyola, 2003. p.14.

[2]Platão. Sofista. In: Diálogos/ Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa- 5. Ed.- São Paulo: Nova Cultural, 1991. [Coleção Os Pensadores]. p. 160.

[3]Arêas, James Bastos. A instauração ontológica no Sofista de Platão. 196 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Rio de Janeiro, 1999. p. 171.

[4] Brochard, Victor. Capítulo II- Teoria de Platão. In: Do erro; tradução para o português Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Jean-Marie Breton.- Fortaleza: Ed UECE, 2006. p. 35.

[5] Platão. Sofista. In: Diálogos/ Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa- 5. Ed.- São Paulo: Nova Cultural, 1991. [Coleção Os Pensadores]. p. 151.

[6] Ibidem, p. 154

[7]Brochard, Victor. Capítulo II- Teoria de Platão. In: Do erro; tradução para o português Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Jean-Marie Breton.- Fortaleza: Ed UECE, 2006. p. 36-37.

[8] Ibidem, p. 41.

[9] Arêas, James Bastos. A instauração ontológica no Sofista de Platão. 196 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Rio de Janeiro, 1999. p. 117.

[10] Brochard, Victor. Capítulo II- Teoria de Platão. In: Do erro; tradução para o português Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Jean-Marie Breton.- Fortaleza: Ed UECE, 2006. p. 47.

[11] Platão. Sofista. In: Diálogos/ Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa- 5. Ed.- São Paulo: Nova Cultural, 1991. [Coleção Os Pensadores]. p. 176-177.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Psicologia na Escola- uma pequena nota


A importância da psicologia na educação é evidenciada na relação professor-aluno/ aluno-professor e nas questões ligadas a uma espécie de atitude da instituição educacional para com os membros que a constituem. O “objeto” da psicologia é, dentre suas muitas atribuições, um objeto complicado de estudo: o homem. Seu comportamento, suas relações, seus afetos e transtornos tornam-se objeto de análise; e muitas vezes não se chega a um consenso absoluto, um marco essencial do caráter humano da psicologia.

Diante do aluno, o professor não conhece sua subjetividade, nem ao menos tem uma idéia superficial de quem seja esse ser humano à sua frente. De certa forma o modelo de educação nos tira a autonomia de reflexão. Cabe, então, ao conhecimento da psicologia aplicado ao sistema de ensino se obedeceremos ou não tal afirmação. A psicologia estuda o ser humano em sua complexidade e a escola é, ou deveria ser, o primeiro contato com o mundo depois da família; uma relação com o desconhecido, com pessoas diferentes, com histórias de vida opostas, com gostos diversos e em pleno desenvolvimento cognitivo. Estão em jogo, aqui, comportamentos aparentes e não-aparentes, onde cada um de nós interpreta subjetivamente onde estamos, ou seja, a verdade deixa de ser um modelo absoluto.

Outra questão que clama pela psicologia é a da avaliação. Ela não pode ser um instrumento de tortura, mas existem certas tendências que apontam para o contrário. Modelos devem ou não devem ser priorizados? Será que todos devem ser enquadrados nos mesmos moldes? Se nós afirmamos que todos os seres humanos nascem com as mesmas capacidades de desenvolvimento de um pensamento lógico, o que podemos dizer acerca da história de cada um deles? “Nada” seria, talvez, uma resposta razoável. Algumas teorias exaltam o erro como sendo fundamental para a construção do conhecimento. Outras o compreendem como algo que deve ser eliminado. Como prosseguir ensinando? Seguindo somente um único caminho ou sendo flexível e, assim, seguindo vários caminhos ao mesmo tempo?

A flexibilidade pode ser considerada uma atitude empreendida por uma psicologia aplicada ao ato de ensinar, pois é prudente considerar que a criança tem que aprender certos conteúdos na medida em que vai desenvolvendo sua capacidade cognitiva. A ação do sujeito no meio transforma o meio e o próprio sujeito. Tendo isso em mente, ambos, professor e aluno deixam o status de personagens institucionalizados para tornarem-se sujeitos com esse potencial de transformação.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A Autonomia Da Arte

The Scream, Edvard Munch, 1893

A Autonomia Da Arte

A arte tem como uma de suas principais características a autonomia. Esse é um princípio que não deve ser violado, pois "arte é arte" e uma vez que tal princípio deixa de ser respeitado, o que visualizamos é uma cenário confuso no qual valores de outra ordem invadem a arte, propondo outro "objetivo" que não o dela (objetivo entre aspas: será que a arte realmente tem um objetivo? É uma questão interessante...).
A questão que nos referimos ao tratarmos da autonomia da arte é a de reconhecer que ela possuí leis próprias e não depende, para ser arte, de nenhuma outra atividade e de nenhum outro valor, somente os que possuí nela própria e que possuem a finalidade nela mesma. Assim como Kant, podemos dizer também que a arte é uma finalidade sem fim, pois, apesar de ser um fruto do trabalho e da realidade humanas, a arte não tem um compromisso necessário com a realidade, ou seja, ela é desinteressada e estaria ligada aos prazeres do espírito.
O princípio de autonomia da arte postula que a arte é independente da política, da religião, da ciência e da pluralidade de poéticas e espíritos artísticos. Entretanto, não podemos ignorar a arte que possui uma inspiração ideológica: uma obra só será uma obra de arte se ela não violar o princípio de autonomia, que nesse caso poderia ser o desprezo de toda obra que não fosse ideológica. Esse autoritarismo na arte colocaria que não é arte aquilo que não comunica uma ideologia.
As várias definições de arte perpassam pela questão da autonomia, que por sua vez se desdobra em várias outras definições. Uma delas alerta para o fato de que é impossível ao artista, por exemplo, a ruptura entre suas convicções morais e sua ação criativa. Nesse caso, a obra poderia nos comunicar algum valor desejado pelo artista, mas a autonomia estará segura se esse objetivo não for absolutizado. A arte não é absoluta, ela é solidária de correlações desde que ela continue sendo arte e toque em questões estéticas, que interessam aos mais variados tipos de arte.